Vidas paralelas


Escrevo-te porque não te consigo tocar. Criámos uma bolha pouco inocente, como um flash que nos cega ou uma fotografia de um ângulo novo e que desmascara a nossa melhor versão. Fomos inconsequentes, fomos ávidos um do outro, praticámos a eloquência e a sedução do discurso, provámos a cordialidade disfarçada de ousadia, fomos a perversidade de um romance e a atração concreta de um fruto quase proibido. Entre essa bolha e a realidade existe um abismo que tu criaste inconscientemente. Como pode o fascínio dissipar-se assim? Terá ele realmente existido? Se era para encenar, que fosse uma encenação completa, que me roubasses o coração mas me permitisses falar de sentimentos, porque só consigo estar em palco dando tudo de mim. Sem emoções envolvidas, recuo. Recuei e aqui estou a escrever-te. Mas com o receio de te generalizar, uma vez que seguiste o padrão da amnésia que todos seguem. Contudo és especial. Não tanto para mim, mas para todos os outros que talvez conseguiram mais de ti do que cruzar-se contigo. Sinto que marcas as pessoas. És diferente na forma de interagir com o mundo, despertas um novo lado em mim, um lado poderoso e contido mas que sonha em ser por vezes humano e vulnerável. Como se de repente me ensinasses a domar emoções quando toda eu sou emoção, um espetro sentimental em forma de gente ou uma arma de amor com uma alma embutida. Gosto dessa forma de construíres a minha desconstrução. Estimulas facetas, rumos e sentidos, sinónimos das tuas vidas paralelas. Despoletas um novo eu, um eu revigorado, confiante e irónico. Um eu ainda mais intenso, explosivo. Um duplo eu. Tão fragmentado como a tua natureza. Gostaria que esta atração virasse conexão e que, depois de o ser, fosse como um postal que não fica fora de moda ou um quadro a preto e branco intemporal. Como uma obrigação que o destino poderia sentir ao nos querer cruzar mais vezes. Apenas fomos um do outro por mero apetite ocasional. Vias-me quando em mim tropeçavas e quando, juntos, pertencíamos às madrugadas e brincávamos ao jogo de sedução carismática e apetecível. O jogo em que sempre nos aclamámos de elo mais forte, mas onde só queríamos expôr o nosso lado mais fraco. E, apesar desta aventura, sei que nunca te toquei mas é como se os meus poros já soubessem de cor os meandros do teu sabor. Não te quero só na imaginação do toque, não te quero só nas madrugadas em que servimos de café um para o outro, prefiro ser só a insónia de um coração que não quer adormecer. Não me faças sentir como um descanso pós-laboral, faz-me sentir a protagonista de uma das tuas realidades paralelas, deixa-me ler-te um pouco e navegar tranquilamente por esse mundo tão descaracterizado como o meu. Sou paciente e tenho remos dedicados face a mares revoltados. Sabes, não é o cariz emocional que te pressiona, são as tuas vidas misteriosas e o consumo energético ao omiti-las. Não sintas pressão por falar de emoção, quando aquilo que eu te poderia oferecer seria apenas e somente libertador. Tens mais medo da tua liberdade sentimental do que do teu casulo, eu sei. Irónico não veres que amar é ser livre. Irónico alimentares o anonimato em prol do teu escudo pessoal. Não aprisiones essa curiosidade na geometria da tua varanda, não trates como inválida essa avidez pela vida, não queimes essa atração nos teus cigarros noturnos. Não queiras ser nicotina quando podes ser fogo. Não sejamos apenas a fachada do aperto de mão ou as noites mal dormidas por uma saudade de algo que nem sequer aconteceu. Vem, vamos brincar às madrugadas prometidas em que me prometes ser mais do que carnal.

Comentários

  1. "depois de o ser, fosse como um postal que não fica fora de moda ou um quadro a preto e branco intemporal." <3

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    1. Fico feliz que se identifique com esse excerto <3

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    2. Aquele excerto que de tão especial que é, toca o nosso coração, ficando escrito nele para sempre.
      Inimaginável o teu talento <3


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Zaask

Escritora e Fotógrafa