Chove na cidade


Chove na cidade como um símbolo de humanidade, como um eco de nativos longínquos. Chove na cidade como um despejo das lágrimas do passado ou daquelas que não existiram por orgulho. Chove como uma tempestade que te quer abalar ou como um suspiro auditivo que te quer curar. Chove, simplesmente chove. Caem pedaços de chuva que, tal como eu, se habituaram a ser apenas de passagem para o mundo e para as pessoas. Sou essa limpidez que já passou por centenas de ciclos de evaporação e que se continua a atirar para um mundo negro e sujo. Sou como essa chuva que se entrega para a calçada sem saber a direção para onde vai desaguar, sou essa fé de que vou lavar almas, esfregar o negrume que é a descrença no amor. A calçada é como o mundo e como as pessoas que esperam algo puro vindo do céu mas que não agarram essa bênção. Questiono se a calçada realmente espera por isso e se as pessoas esperam por isso. Creio que ambos se limitam a existir e a aceitar que a foz, onde encontram o mar, não é o seu destino. Só os céticos conseguem aceitar a sua condição sem sentir em si a revolta da mudança. Somente os sonhadores acreditam no irreal, no imaterial, no impossível. É essa chuva de sonhadores que vem conquistar o mundo, porque o mundo conquista-se de cima, não de baixo. À atmosfera pertencem as nuvens dos sonhos, ao céu pertencem as aves que são sinónimo de liberdade, ao ar acima de nós pertence o espaço das copas das árvores e de tudo aquilo que cresce. Não se voa rastejando na terra e tudo o que implique crescimento está um passo mais perto do céu. O crescimento começa aí. Começa nas chuvas intempestivas e arrojadas, começa nos sonhadores que contemplam em si o mistério do universo. Nós que vivemos acima das nuvens, nós que sentimos o belo e o simples, nós que chovemos na calçada dos que nos rejeitam, mas que tanto precisam de nós para serem lavados. Nós que não fomos uma prece ou uma súplica mas ainda assim viemos para cobrir o mundo com um conceito profundo sobre viver e sentir. Nós que seremos relembrados pela intensidade com que chegámos e pela dor futura daqueles que se afastaram sem motivo. A verdade é que não existem calçadas que nos saibam receber, não há sequer alicerces humanos para que sejamos compreendidos. Há pedra por essas calçadas e por esses corações.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa