Natureza humana


És a falta de compaixão, és o segredo da solidificação, o auge do silêncio, a essência do inverno, és a falta de coragem, o refúgio de um desesperado, os pulmões cansados de um fracassado, a crueldade de um olhar, és a mágoa afogada, a banheira ensanguentada, és a espada de Lúcifer, a cobardia dos tronos, a intocável presunção das coroas, a palavra de ferro de quem ordena. Estás no sangue das feridas de quem mata ou manda matar, estás nos rios de lava do inferno, na astúcia de um servo do diabo, na terra que cobre as campas, no machado dos matadouros e nos poros de um ser humano. És o que gerou a Inquisição, o Holocausto, o extermínio em massa, as valas de esqueletos, a perseguição! És o pilar do muro de Berlim, o projeto de um fuzileiro, a arquitetura de um campo de concentração, os contornos de uma forca. És a arrogância dos ditadores e a ignorância em bruto. És a flor da morte. És a chave da destruição e a fechadura do Homem. Vais do berço ao caixão, tornas-te indizível e ambíguo, fazes da natureza dos homens algo malévolo, quase corrosivo e um tanto mortífero. Mascaras-te nos atentados e na ausência de escrúpulos e o mundo não fala de ti. Fala-se de mau caráter, de falta de coração, de maldade, de atrocidade, mas não se fala de ti. És invisível como o vento e escapas-te como a sua leveza. Há quem te veja como satisfação pessoal, mas tu és a sobrevalorização de um dever, és o desejo de querer sempre mais, a ambição de voar por cima dos outros, a luta desmedida pelo umbigo do mundo. És o que todos chamamos de orgulho! Os arranha-céus que se vêm do deserto, a luxúria que vêm os tristes olhos amendoados daquela pobre gente é orgulho. Uma mãe que abandona um filho é orgulho. Todo o sangue nazi é orgulho. Uma ameaça é orgulho, uma granada também. Os ferros que sustêm as nossas casas são orgulho. O café que tomamos é orgulho, orgulho de quem explorou os mais fracos. Uma fábrica de gravatas é orgulho. O cachimbo pousado na janela é orgulho. A almofada de seda é orgulho. O tapete vermelho é orgulho. O lugar vazio na plateia é orgulho. Os holofotes são orgulho. A caixa de papelão que um mendigo tem para se aquecer é orgulho. A propaganda política é orgulho. O alcatrão das estradas é orgulho. Os orfanatos são orgulho. Um cão abandonado é orgulho. Enchutarmos uma mosca é orgulho. Ignorar o despertador é orgulho. Talvez viver seja orgulho. Orgulho, orgulho, o eco do orgulho.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa