Não Sou Cidade

 

Se a cidade fosse só o silêncio da noite, eu ficava. Se a cidade fosse só a fé dos crentes que restam, eu ficava. Se a cidade fosse a identidade das portas mais antigas, eu ficava. Se a cidade fossem as lendas que deram nome a um povo, eu ficava. Se a cidade fosse só um qualquer sonho americano de deambular pelas ruas bêbado de uma infantil felicidade, eu ficava. Se a cidade fosse só o jardim florido que ainda ninguém descobriu, eu ficava. Se a cidade fosse só a doçura dos barcos que rasgam o pôr do sol, eu ficava. Se a cidade fossem só os quadros dos turistas, eu ficava. Se a cidade fosse só o relento da bonita chuva a beijar o rio, eu ficava. Se a cidade fosse só a sesta debaixo da árvore que sobreviveu, eu ficava. Se a cidade fosse só vaguear sem tropeçar, eu ficava. Se a cidade fosse só o humilde e solitário candeeiro de rua, eu ficava. Se a cidade fosse só a misteriosa madrugada de orvalho, eu ficava. Se a cidade fosse o abraço dos que a abraçaram, eu ficava. Se a cidade não fosse ser nómada, eu ficava. 
Se a cidade fosse tudo o que eu sonhei, eu ficava. E se toda eu fosse cidade, eu ficaria em mim. Mas toda eu sou natureza que não cresce na sombra dos prédios mais altos. A cidade deixou de ter voz e é apenas uma péssima obra de arte feita à pressa. Eu grito numa linguagem que não é de cidade. Grito chorando. A porta do metro esmaga-me e eu choro, as minhas bochechas são entaladas pela multidão e eu choro, a paisagem da maresia já não cativa ninguém e eu choro, o telemóvel substituiu o jornal e eu choro, uma criança carece de oxigénio cultural e eu choro, as chuvas inundam as infraestruturas de uma cidade mal desenhada e eu choro, os velhotes não têm relva verde enquanto jogam xadrez e eu choro, nenhuma geração me parece feliz ao ir trabalhar e eu choro, o mais idoso não tem lugar para se sentar e eu choro, os bebés dormem abafados no mesmo berço e eu choro, os hospitais cospem nos direitos humanos e eu choro...
O grito dos citadinos ou é o engolir da agonia ou é o desfecho da morte. O avanço é pesado e brusco. Sinto que o meu choro é fruto da inquisição de um mar que ainda não quis aceitar que é feito de lágrimas. A sociedade é o semblante de um eterno choro, mas ninguém quer realmente chorar porque isso é ter medo de sentir. Todos aplaudem em uníssono como uma fuga silenciosa de si mesmos. Todos inchados dos sonhos que invejam ou sumidos dos cigarros que engolem. Apáticos e preconceituosos, com colapsos emocionais. A orquestra do comodismo. Que pintor criador será este que sugou a cor das ruas? Que filósofo criador será este que desnivelou a forma de sentir? Que escritor criador será este que ainda não criou os meandros da salvação? 

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Zaask

Escritora e Fotógrafa