Ensurdecedor

 


Na próxima rua eu posso já não estar. Se a minha sombra for a fertilidade dos meus sonhos, então também ela pode já não ser. Acabaram-se as forças, instigou-se o medo do futuro. O tempo é como uma corrente que me amordaça. Não sou mais a menina que sonha acordada e que vive no bonito delírio da utopia. Ser-se adulto é perceber que a utopia mata. É aprender a calçar sapatos de cristal e fingir que o mundo não nos magoa. É rir teatralmente e inventar clichés que possam servir a qualquer um. É cansativo ter que pertencer quando tudo cá dentro é diferente, é ousado, é ensurdecedor e contrastante com a realidade. É como um palco invertido que não aceita reformulações. Sinto o peso de um esqueleto que enlouqueceu. A derrota enlouquece. Vejo a partida de um rosto que já foi meu, de um corpo que já foi ávido. O futuro grita-me em nome da surdez que o cansaço me deu. O falhanço é agora o nome dos meus passos. Hoje sou a madrugada perdida, a lua esquecida, a palavra ferida... Hoje sou a chave de casa enterrada na areia dos baloiços de criança. Já não sei o caminho para casa, escolhi ser apenas criança. Serei para sempre um rodopiar sem graça, a tontura amorfa de só existir. O véu branco das promessas foi manchado pelo fumo negro das cidades. Elas ergueram-se como holofotes que queimam. Elas teimam no materialismo e nos papéis que representam pessoas. Somos só um rascunho no lixo dos tubarões. Somos só mais um adulto escondido nos seus medos. Mais um par de pés que se rompe sem propósito. Mais uma garganta que desesperou por gritar os seus direitos, por praticar a sua sinceridade. Quero fugir para bem longe. Prefiro ser ouvida pelo silêncio do que não ser ouvida por multidões. Prefiro a azáfama interior de pensar do que um interior insensível a viver com uma azáfama exterior de um mundo que finge fazer acontecer, que vende a cruel ilusão do sucesso. Não pertenço a esta desonestidade de promessas. Só quero fazer parte de um pôr do sol calmo. Quero ser esse sossego de final de dia, feliz pelo dia que tive e feliz pelos que hão-de vir. Quero sentir que sou suficiente e que me basta cumprir pequenas missões diárias para a água continuar a nascer nas fontes, para o sol me continuar a aquecer, sem que a depressão me invada e já me seja indiferente viver. Quero sentir que sou merecedora dessa água das montanhas e desse sol que nos ama, sem sentir que sou eternamente turista de um planeta que não me quer. Que aproveito os restos de vida em vez de eu ser essa vida. Não nos cuspam ideais de vida quando nenhum está certo. Um jovem podia conquistar o mundo que jamais conquistaria o sucesso. Hoje, um jovem, é só um pobre sobrevivente que tem de escolher entre raízes e a longevidade anónima. É ensurdecedor ser-se jovem. Custa respirar. Custa ser o que o coração nos pede para ser. 

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Zaask

Escritora e Fotógrafa