Notívaga

Era o começo do anoitecer e resolvi sair de casa sem destino. De mãos atrás das costas, como quem limpa as mãos de um crime. O crime de amar mais uma vez. Mas não falemos mais de amor, falemos antes do café que esfria no inverno ou daquele cujo calor na nossa boca permanece para nos lembrarmos que acabou. A inquietude de existir é o motivo que me faz querer sentir o velho olhar da noite, sentir os velhos passos, a chuva de águas passadas, ao sabor de uma intemporalidade estranha e libertadora. Apesar da minha pressa de viver eu sempre quis que as noites fossem longas e que o entardecer fosse para sempre o meu próprio entardecer interior, ao abrigo de um novo luar frágil e belo. Sou só um pouco mais débil que a noite. Ela eleva em mim uma libertação de dor. Ela ensina-me a sossegar, a não ter pressa. Ensina-me que as ondas dizem mais sobre a nossa direção do que o rumo que queremos dar ao barco. É um escuro que me seduz e me faz esquecer as moradas perdidas de amores perdidos. Torno-me na minha morada e na minha fuga. E de repente sou a rebelião. Sou a que chora em plena chuva mas também a que dança euforicamente. As lágrimas mais carnais e a dança mais redentora. A dor, a noite e eu: a melhor equação. O desequilíbrio mais bonito. A promessa mais pura. À noite todos somos vultos a caminhar pela cidade. Sinto um certo prazer nessa igualdade terrena de sermos todos só uma sombra sem direção, sem que se declarem rostos e cores, apenas passos que revelam o ritmo com que se enfrenta a vida. Vejo mentes desassossegadas, abraços ao crepúsculo, olhos que se perdem nas estrelas e estrelas que se perdem nos nossos olhares famintos de sonhos e altitude. Tudo na noite é subtilmente grandioso. Prefiro ser só esse vulto na noite para que a minha verdade não me denuncie, porque dentro de uma sombra podemos ser o que quisermos. A minha intensidade denuncia-me na luz do sol, como um soldado cego pelo dia, como um tirano arrependido. Absorvo a energia imensa das multidões, carrego uma cruz de emoções alheias. Sinto que amo estas ruas mas que o meu caminho certo não passa por elas. O mesmo acontece com as pessoas. Amo-as com a mesma certeza de que não é por ali que devo ir. Amo esta noite mas imagino-me numa outra noite longínqua, no futuro, num panorama existencial mais definido. Sinto que vivo num limbo pouco lúcido mas enquanto ele durar eu quero vivê-lo. A atmosfera noturna é como o livro dos meus delírios. Como o quarto escuro onde ninguém quer brincar. Como se a noite tivesse um semblante, uma identidade, como se a noite fosse toda eu. Quanto a ti, posso dizer que se achas que me perdeste lembra-te que nunca perdes aquilo que nunca foi teu. Não queria que fosse tão pouco o que nos une, mas é o pouco que me leva a ti: o rio que nunca foi mar, o luar que terminou antes de chegarmos, o comboio que descarrilou antes da partida. Sempre fomos só a ânsia de ser algo maior, sem nunca o termos sido. Tornámos as noites grandiosas mas a noite fez de nós a nossa própria efemeridade. Claro que não estou a falar de amor. Estamos num mundo em que todos querem morrer por um amor que só se cura com a falta dele. Sinto-me como esse café que apenas serve para tirar a insónia de alguns olhares indiscretos. Sinto um descarte prematuro de tudo, uma irresponsabilidade humana perante aquilo que sempre parece tão fogoso. Vivo acorrentada a essas memórias quentes e sinto que uma parte de mim ainda está lá atrás a ser feliz. Ouço o eco no fundo da rua de um eu moribundo que pertence ao passado. Um eu pouco nítido, menos requintado, menos sábio, mas mais feliz. Só gostava que um dia alguém me olhasse com a mesma ternura com que eu olho os gatos de rua, tão ou mais abandonados do que eu. Mas tentarei sempre ver a glória da luta e, principalmente, quero ter lucidez para ver a dor, quero reconhecer os meus fantasmas. Não há nada tão nosso quanto as nossas derrotas. São minhas as quedas, são meus os abismos e sei que também eu os posso temer porque também Deus criou as noites e também Ele as temeu. 

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Zaask

Escritora e Fotógrafa