Fugitivo

 


Eras de uma pele morena belíssima, barba negra, cabelo forte e traços indianos. Prefiro falar de ti pois talvez sejas mais breve do que aquilo que sinto por ti. Parecias intenso na tua primeira abordagem e até verdadeiro. Naveguei nesse sorriso tímido que, apesar de reconfortante, não foi constante. Tinhas pressa de viver, havia encanto nas palavras que dizias baixinho. Seduzia-me esse teu ar de burguês imponente, mas que parava o tempo para me piscar o olho de forma indecente. Gostava dessa tua ousadia antecipada e, hoje, assisto à tua forma de antecipares a minha dor. Soubeste ser belo na minha mente mas sempre tão errado no mundo real. Sempre me foi difícil aceitar os factos mas hoje somos como uma ruína datada num qualquer livro de história. Aquela que ainda é falada mas cada vez mais perto de ser esquecida. Eras de atitude robusta mas corpo meigo. Tinhas uma doçura recalcada como se a visses como um trauma que não queres revelar. Sempre foste difícil de decifrar. Escondes-te atrás de um lado boémio que camufla um lado bonito que grita por ser nutrido. És a flor que a si própria não se rega. Não te reconheces ainda. Sei que anseias o mundo, mas antes tens de te ansiar a ti mesmo. Vives num comodismo simpático de leve aceitação, mas falta-te amor. Falto-te eu. Vivemos escondidos do mundo, nas noites chuvosas e nas luzes estridentes, no frio do silêncio e no calor das festas. Fomos essa química improvável, essa sedução numa bolha só nossa, numa linguagem também nossa. E de repente foges e sais do palco. A música deixa de tocar. Deixo de saber de ti. De repente moras tão longe como os astros. Sinto que queres forçar uma espécie de amnésia, forçar-me a ir para outra festa. Como se fosse possível esquecer algo que moveu a órbita do mundo. Hoje não procuras sequer tornar subtil a tua frieza. És cruel como quem gosta de o ser. És o génio da dor. Foste a fuga na luz da noite, foste aquele que esqueceu e se ausentou, mas que sempre surgia à minha frente como uma moldura sem fotografia numa casa inabitada. Não captámos o retrato, mas fomos esse retrato. Não deixámos rasto nem forma, mas houve um tempo só nosso. Aquele que já ninguém pode mudar ou roubar. Estavas ali, sempre ali, a relembrar que hoje somos um final desassossegado, como se estivesse sempre em aberto uma espécie de provocação no ar. Como se pudesses sempre tocar para mim mais uma vez, ainda que não fosse para mim que tocasses. 

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Zaask

Escritora e Fotógrafa