Estado Febril

Levanto-me neste estado febril de sabor a ilusão. Olho o mundo que, agora, tomou a geometria da minha janela, de menor credibilidade que os meus sonhos e com ainda maior desfoque no seu propósito do que a minha falta de lucidez. Resumo-me à temperatura que o meu corpo emana ou aos fantasmas que o mundo insiste em alimentar ao redor do medo. O medo é cada vez mais o alimento da sociedade. O temor. O pânico. A eterna necessidade de criar vazios que assustam ao invés de olhar às bonitas probabilidades de ainda sermos felizes. Neste estado febril olho o mundo com leveza, com sensatez e desmistificação. Esta febre poderia ser um penhasco do meu tumulto onde me agarraria à ideia de que o azar é como uma virtude que gosta de ser falada, mas não. Prefiro confundir a febre numérica com a febre de existir, ou a febre de ser um ser pensante que combate a sua misteriosa dor com perguntas existenciais. Serei eu apenas um estado febril arrastado no tempo? Serei eu um dos fragmentos de um sonho que se desmoronou e que eu julgava ser meu? Serei eu a febre ou será o mundo? Será a minha impotência de viver em sociedade ou a impotência da sociedade em coexistir comigo? Não me quero afogar nas demências do quotidiano, quero escolher apenas existir. Quero que respirar seja o meu deleite. Não quero esquecer que os passarinhos cantam ou que a primavera mais tarde ou mais cedo vai voltar, não quero esquecer que há luz natural atrás das minhas cortinas ou que ainda existem sons prematuros na cidade, não quero esquecer das amizades que me anseiam ver de novo ou que a frescura do rio ainda não desapareceu, não quero esquecer a melhor combinação que tenho no armário para um dia de sol de inverno ou que os parques não fugiram do seu lugar. Sei que o sol me aguarda para voltar a desenhar a minha silhueta em torno das sombras da cidade. Sei que ele me olha com saudade e que sabe que este estado febril é só um pedaço de sol dentro de mim a querer emanar algo bom. Por vezes recordo com nostalgia o passado, outras vezes sinto-me grata por transportar tão boas memórias, e questiono em que parte do tempo eu estou. Não fisicamente, mas emocionalmente, em que tempo cronológico eu moro? Vejo-me a ignorar as tendências que passam na rua, os melhores carros a desfilar em hora de ponta, a moda dos que passam na passadeira que está ao meu alcance, e sinto-me a respirar um ar caloroso do passado. A imaginar cavalos a correr nas mesmas ruas, campos de trigo a baloiçar ao vento, o amor dos nossos avós a morar no vapor da sopa que nos espera, o sorriso quente das pessoas num dia de sol, a poeira do chão a dançar com os coches de um qualquer século antigo. E eu ali, criança, na última carruagem à espera de um futuro. E eu sem saber que aquele momento iria ser para sempre o mais desejado do meu futuro. Que hoje daria tudo para replicar aquele amor pela vida. Não o meu, mas o amor que eu acreditava piamente que existia nos outros. Não acreditava que o amor era uma das linguagens, acreditava que era a linguagem. Que todo o mundo respirava amor. Não importava se as montanhas eram de facto cor de rosa, se existia ou não a fada dos dentes ou o pai natal, importava sim a minha crença. Era bonito acreditar. Era bonito não querer sequer levantar o véu da sociedade. Não querer espreitar o lixo debaixo do tapete quando ainda podia dançar em cima dele. Rodopiar e dar um chapadão à frieza do universo. Existir apenas, num eterno estado febril. E que essa febre para sempre signifique o auge da lucidez.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa