Dois à mesa


Era uma noite fria de Junho em que a natureza entra pela casa sem pedir licença, como um inverno mascarado de emoções ou uma cortina aflita para ser a mensageira do mundo exterior. Éramos dois à mesa: eu e o vento. O vento que transporta as perdas, a saudade, a dignidade. O vento que suporta a falsidade da dor ou a crueldade de uma verdade, a insípida tela das promessas ou a extravagante cor das sensações. O vento que trás consigo as confissões profundas ou o amor das cartas escritas à pressa, a sinopse de toda uma vida ou apenas a capa apaixonante de um livro de emoções. O vento que arrasta consigo a eloquência dos amores perdidos ou a expectativa de quem quis ficar, os sonhos rarefeitos ou a montanha escalada sem querer. O vento que nos fala da flor que não brotou ou do olhar que falhou, da dedicação que faltou ou de um poema que não rimou. O vento que nos relembra do desejo da vida eterna ou do porquê do apocalipse, do infinito racismo nos olhos dos Homens ou do preconceito mascarado de um oco orgulho. O vento que nos desperta para o cosmos ou para a nossa massa espiritual, o dilema do destino ou a ostentação do livre arbítrio. O vento que ergue as nossas feridas ou apresenta as nossas curas, dilui orgulhos ou reforça a nossa possessão. O vento que assinala as datas das revoluções ou epidemias, das guerras mundiais ou dos contratos políticos de humor negro. O vento que fala sobre as fronteiras fechadas porque nunca ele foi tão livre, nunca o vento teve tanto cariz de mensageiro como hoje. Não nos fala apenas do frio da madrugada, mas de um mundo que chegou à exaustão. De cidades cúmplices que se renderam ao silêncio mas não à bondade, de azáfamas presas nos lençóis da manhã. Enquanto o vento se ergue gelado, há milhões de corações a bater a troco de sonhos, insaciados e infiéis perante as pessoas e as religiões que seguem. O vento que fala sobre viver a verdade ao invés de a incutir nos outros, de sermos apenas nós sem necessidade de o provar, porque o amor apenas chega a corações permeáveis e a opção de contágio está no outro, não em nós. O vento que nos fala de onde veio, dos anos luz que nos separam e que separam as pessoas entre si, da definição de distância métrica e distância emocional. O vento que nos presenteia a efemeridade de uma brisa ou a brutalidade de uma tempestade noturna. O vento que, tal como nós, só se reconhece perante as consequências que provoca nos outros. O vento que, tal como nós, é um espetro de intensidade descontrolado, ora aconchegante, ora distante, ora subtil, ora intrusivo, mas sempre equidistante de si mesmo. O vento que, tal como nós, pode destruir um bairro inteiro ou ajudar uma andorinha a voar, destruir um barco ou levar um náufrago a bom porto. O vento que, tal como nós, consegue abraçar sem aquecer e voar connosco, arrefecendo-nos aos poucos. 
O vento que, diferente de nós, esfria o café desta madrugada enquanto eu me afogo nele. 

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Zaask

Escritora e Fotógrafa