Bonança


Vivemos presos à ideia de um comboio invisível chamado bonança. Não só aclamamos que ela existe como fará da nossa vida a sua paragem principal. Como se para viver fosse estritamente necessário esse isco da fortuna, essa ilusão de oásis eterno. Não, a bonança pode simplesmente não existir e se existir não tem de ser após uma tempestade. Um dos problemas dos diálogos motivadores é que na falta de vocabulário emocional restam-nos os mitos do senso comum. E tudo o que seja do senso comum é falível. 
Aprendi que a bonança não é nem deve ser um fator externo que aguardamos ansiosamente, mas um fator interno que cuidamos diariamente. A bonança é um estado de espírito. Todos sabemos por experiência própria que a forma como lidamos com um problema, um vazio, o que seja, tem mais peso do que o próprio problema em si. É a forma como nos sentimos que dita o rumo dos acontecimentos seguintes. Ora, os problemas não trazem consigo sentimentos associados, daí que as sensações que adotamos sejam algo que nós mesmos nos proporcionamos. Quando escolhemos a sensação positiva temos a bonança, quando escolhemos a sensação negativa temos a tempestade. A bonança reside nessa gestão racional, nessa forma saudável de nos desligarmos dos nossos sentimentos. Aprendi que esse espaço cuidado e privilegiado entre nós e os nossos pensamentos se chama de vastidão. Ela contrasta com a bonança hostil que a sociedade nos impõe, pela forma como coloca o ser humano na equação. A bonança pré concebida baseia-se na tempestade interior, no recalcamento dos traumas de não atingir certos objetivos de vida, até que surja uma bóia de salvação que te faça esquecer de todo o processo do passado. A bonança que eu defendo é aquela que ergue pessoas reais e resolvidas, cujo processo de dor não foi simplesmente esquecido mas cuidado e respeitado. Ainda somos do tempo em que a bonança é como a meteorologia, nunca se sabe quando virá o sol mas acredita-se que as possibilidades sejam giratórias. Não, a bonança não é nenhuma roldana com a mesma rotação dos planetas. A bonança não é uma conta rígida de somar em que misturas emprego, romance, família e saúde. É, sim, uma meditação mental de forma a seres grato pelo que és e tens, para que nunca desabes pelo que não tens ou pelo que não és. Conversemos com a natureza e entendamos que, tal como ela, a nossa alma existe por si só e que ela não perguntou às pessoas e ao mundo se podia existir. Ela simplesmente existe, tal como a bonança pode simplesmente existir. 
Outra questão da bonança é que se afirma vezes sem conta que ela vai aparecer porque merecemos. Quando é que merecer alguma coisa alterou as mentes formatadas do Homem? Mereço uma oportunidade como os inocentes merecem a liberdade e não a têm, como os escravos que nunca mereceram ser escravos e assim o foram durante séculos, como os pescadores que não mereciam o mar revoltado e foram engolidos por ele, como os não cristãos que nunca mereceram ser julgados e morreram nas mãos da Inquisição, como os Judeus que jamais mereciam a discriminação e desapareceram no Holocausto. Merecer ou não merecer é apenas um detalhe emocional que nos comove e nos faz esquecer da ingratidão da vida. Merecemos o mundo mas nunca o teremos porque também nunca o compreenderemos. 
Esperar pela bonança hostil é como admitir uma espécie de humilhação, ao mesmo tempo que admitimos que só nos salvamos dela por estarmos à espera de alguma coisa. Como se o futuro deixasse de depender de nós para passar a representar um bilhete que compramos para permanecer infinitamente na estação desse comboio invisível. Não existe atitude mais passiva e acomodada do que esperar, porque esperar é estagnar e estagnar impossibilita-nos de nos decifrarmos.  
A bonança é um coração bem resolvido, é uma alma que não trava os seus sonhos, principalmente os pequenos e alcançáveis, é a paixão inesgotável pela vida, pela simplicidade de existir. A bonança não está no que achas que vais gostar no futuro, porque o achar que se gosta sem saber que se gosta é um mero projeto. A bonança somos nós. Começa em nós e acaba em nós. 

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Zaask

Escritora e Fotógrafa