Viciada em perder


Hoje sinto-me apenas o quadro que todos compraram quando estava na moda admirar a ousadia das cores e o mistério da diferença. Sou o quadro que existe na estante de vários amores antigos, na memória de corações perdidos. Sou um passado de descoberta e azáfama e um presente de estagnação e deceção. Hoje sou a geometria desse quadro esquecido que olha pela janela, para a vida que acontece lá fora. A minha vida com as vivências que levei. A vida acontece lá fora por entre os pingos da chuva ou o cheiro a terra molhada, por entre os raios de sol ou o reflexo da lua, por entre a gravidade do orvalho ou a firmeza do gelo, acontece ao redor das estações do ano. Mas há sentimentos voláteis como a brisa primaveril ou como o decair das folhas de outono. A vida acontece entre a expectativa de sermos amados e a loucura de amar, no espaço entre a crença no impossível e a decadência de sermos nós mesmos. A vida tem acontecido por entre trilhos e tempestades, aventuras e desgostos, e durante muito tempo fez sentido por isso mesmo. Enquanto iniciantes, tudo parece aliciante, sentimos que perder faz parte e acolhemos a derrota como um capítulo fortalecedor. Mas isso termina quando o fracasso vira carrossel e quando percebemos que para sofrer a viagem se torna de graça. Ficamos viciados em perder. Viciados nas pessoas erradas. Viciados nas histórias mais fugazes. O mundo foi tão forte por criar os alicerces para alguém tão sonhador como eu, mas tão frágil para suportar os meus sonhos. O mundo exige que amemos mas logo a seguir prova-nos que amar é só uma fraqueza disfarçada. O amor só foi inventado para que a realidade não fosse tão rude, mas ele não é uma bóia de salvação. Ser vulnerável não faz parte deste mundo assustador. A vida aconteceu lá fora, como se a natureza me acolhesse e dançasse comigo e outros quadros esquecidos me observassem da janela como se eu estivesse numa tela de cinema. Eu fui esse cinema quantas e quantas vezes. Conheci os bastidores das emoções, perdi horas a fio a interpretar papéis demasiado teatrais ou atitudes que não correspondiam ao perfil da personagem, e dei por mim a chegar novamente ao início do labirinto. Não existem respostas. Foi por isso que preferi ser espectadora ao invés de personagem. No fundo, o que tantos foram comigo, meros espectadores do meu conto de fadas e da minha dor. Eu fui esse rodopiar de esperança e alegria, essa inocência de esperar sempre o lado bom das circunstâncias, bebi dessa hipnose que não nos deixa tontos, mas acabei por ceder à loucura de amar demais. Muitos achavam que era um texto decorado ou um sentimento confuso, mas não, limitei-me a ser eu desde o princípio. Não sei ser de outra forma. Não sei forçar sentimentos, só consigo senti-los. Não tenho voto na matéria sentimental porque o meu coração e a minha forma imensa de sentir toma as rédeas de mim própria. Se a vida é um teatro então o meu guião é o da verdade. A partir daí fui vista como um quadro com defeito, quando o defeito se trata de amar. Fui um quadro demasiado real e intenso, não apenas para ser segurado como um objeto mas para ser cuidado como algo precioso. Hoje pertenço àquela prateleira superior onde existem medalhas esquecidas, as que fizeram os outros gritar de alegria mas que hoje só conhecem o pó da desilusão. Percebi que eu só representava um patamar de vitória exterior e não uma conquista interior apaixonante, percebi que a viagem que eu proporcionava com os meus braços para um mundo de cor e simplicidade era algo que despoletava medo em quem me segurava. Percebi que fui demais para quem foi a menos. Estava constantemente viciada em perder. E a vida continuava lá fora, porque o tempo não parava. As feridas iam sarando mas novas desilusões surgiam. Nunca presenciei um ato heróico de amor, nunca recebi sequer uma explicação passível de ser aplaudida pela honestidade, nunca pude dizer concretamente se vivi uma reciprocidade perfeita. A vida continua a acontecer lá fora onde chove e faz sol, onde se sente a erosão do tempo, sabendo eu que já fui essa erosão e esse tempo. E enquanto toda essa cor da vida existe fora de casa eu retorno à minha condição de cor gasta. Talvez um dia voarei e a minha própria cor ofusque o sol que me intimida lá de fora. Talvez um dia volte a acreditar e a confiar, mas só passarei a cortina da janela de casa se esse sol vier de alguém conhecedor daquilo que é a luz do amor. Não quero ter cópias minhas espalhadas em paredes de pecados e ser ignorada pelos homens imutáveis das casas. Eu não sou somente o fracasso que vivi, não me resumo ao meu vício em perder. Eu sou a atitude de querer continuar, sou a alma que se continua a apaixonar pela luz. Quero ser arte apreciada por um só, cuidada por um só coração e colocada numa estante virada para o céu.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa