Tributo ao Tempo

Fomos cúmplices com a fuga. Foi um estalar de dedos até que voámos sem ver a nossa sombra. Nunca soubemos ser tão livres. Ainda hoje não sei se foi um atalho para algo maior, se é só um profundo deslumbre pela paz ou se é o desenterrar de um eu perdido no tempo que me confronta. Mas se hoje paira uma estranha felicidade, o antes poderia alucinar. Na cidade, até o candeeiro de rua fundido alucina. Viemos por respeito ao tempo. Em memória do tempo sugado e por amor ao tempo que temos pela frente. Estamos aqui para que pensar no nosso futuro seja mais fácil. Era urgente o silêncio para que pensar não fosse só mais um ruído. Rendo-me à natureza e ao alento dos passarinhos. Somos o agora, somos o que acontece porque somos o que tem vida. Vivemos agora com a fauna e a flora. Conseguimos vencer um amor por entre a surdez da cidade, nas frinchas dos gritos colossais de quem vive à pressa e ainda assim a tentarmos viver devagar. A tentar ver uma sinfonia no tiroteio sonoro dos transportes públicos, a tentar contemplar um momento meu por entre corpos ansiosos sugados pelos relógios. Percebi que o que me fascinou, eram agora feridas abertas a tentar ter voz. Tanta coisa a que chamava de vida e que a vida me roubou. A grandeza da azáfama era o retrato de um sonho mas hoje é envelhecimento. O apelo à diferença era refrescante mas hoje sei que consigo ser eu em qualquer lado porque o céu que nos vê não é de ninguém. A liberdade das ruas deu lugar à insegurança de poder voar. Deixou de haver espaço para um interior lúcido e preenchido. Já não precisava da revolta dos mares, já não precisava da overdose de estímulos que me fazia sentir dona de alguma coisa, mas da calmaria para desfrutar a simplicidade porque ela roubou-me por momentos o meu abraço pelas coisas simples. Viver tornou-se algo apreensivo e castrador. Um sítio onde pagas a mais pequenina exclusividade, onde a tua respiração tem uma cotação, onde existe sempre um olhar menos inocente ou um letreiro que te diz se podes ou não podes. Era mórbido para a liberdade. Fomos invadidos e perdeu-se a identidade. Foi por isso que fugimos. Também com pressa, como esse mundo que se afoga no tempo e nele tropeça. 

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Zaask

Escritora e Fotógrafa