Vidros Fumados

 
Éramos duas raparigas, dois polícias, um roubo e uma mão cheia de bairros sociais. Ali estávamos no carro. Numa iludida ronda, mas num pranto real. O dia de sol tornou-se repentinamente numa noite assombrada. O ego do estatuto de um lado, o ego corrompido do outro. Ali nenhuma prosa barata falava sequer de moralidade. As fogueiras falavam sobre uma sociedade que se esqueceu da justiça. Nos nossos rostos, o escândalo. No rosto de Portugal, a delinquência. No carro da polícia, atrás daqueles vidros fumados, foi traçado um futuro incerto para quem ainda escolhe pisar esta terra. As queimadas fulgurantes desapareciam mais rápido do horizonte do que a velocidade com que se impunha a igualdade. Tudo ali parecia bruxaria. Todo o arame farpado parecia ter histórias macabras para contar. Cada roupa rasgada parecia sinalizar a brutalidade dos factos. Tudo parecia esconder algo. Até a família que apanhava laranjas me parecia sabotar a beleza da própria laranjeira. Sinto que nesse dia Portugal escolheu derrotar-nos. Um aplauso para quem rouba, uma palmada nas costas para quem fica sem nada. Não era suposto o mundo ser isto. Não cresci a implantar em mim comportamentos de desconfiança. Sempre considerei uma realidade utópica correr atrás de um ladrão. Está na hora de radicalizar. Desmistificar aqueles rostos repetidos de parasitas, que são como um crime produzido em série, como uma bandeira que ainda é hasteada, como uma liberdade que deixou de representar a voz dos justos. Restou a mágoa, o grito e a privacidade escancarada. Cada lágrima atrás dos vidros fumados representa aquilo que eu não quero calar. O arrepio na espinha, as mãos cheias de nada, os medíocres a encostar o peito ao carro, a sensação de que a segurança deixou de ser um direito. A criminalidade anda por aí, e passeia turisticamente aos fins de semana. Se é isto em que nos queremos transformar, então queimemos as bandeiras e esqueçamos a pátria. Faz as malas, vamos. Já perdemos tempo demais com Portugal. 

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Zaask

Escritora e Fotógrafa