"Falta cumprir-se Portugal"

 

Desvendou-se o mar mas perdeu-se o império.

Há muito que já se falava de potencial desperdiçado. 
Hoje somos só a temperatura dos nossos corpos, apenas sonhos presos em becos sem saída. A sonhar com o dia em que possamos entrar no restaurante em frente à casa. Com o dia em que a própria chave possa abrir uma fechadura de uma casa diferente e possamos sentir a ausência da inflação. Possamos sonhar com o conceito de família, de partilha incondicional, e deixar de só chamar casa à almofada de criança numa casa onde somos nómadas. É isso que Portugal está a instalar nos jovens, a sensação de sermos nómadas. Que nada pode ser nosso, que as fronteiras escancaradas não só dão estatuto aos de fora como quase nos convidam a sair. 

Desvendou-se o mar mas perdeu-se o império.

Nós alimentámos Portugal, fomos a vida das suas ruas, das suas festas, fomos os que o mostraram com orgulho pelas redes, fomos o mote académico para gerações futuras, a publicidade em bruto de uma bonita vida nacionalista. E hoje, somos adultos que quase se sentem como idosos. Desprezados profissionalmente e com apenas um único objetivo: sobreviver. Com uma luz que não brilha mais. De mãos a doer de tantas portas onde bateram e de algibeira vazia pois lá teremos que escolher entre uma maçã e uma casa. Com um sentimento agridoce em relação aos tempos que chamávamos de áureos na faculdade. Tanta benção, tanta gratidão e queima de fitas, para agora restar um vazio depressivo de perguntas sem respostas. O problema crasso é o abandono pós faculdade. Não haver nenhuma inserção direta no mercado de trabalho, após a injeção de cursos mal concebidos mas muito bem vendidos. Ficamos ali, como um náufrago de um navio que sempre te escondeu as regras do jogo. É urgente formar pessoas nas empresas, despender recursos ao invés de exigir anos de experiência sem nunca a providenciar. Até porque é na formação interna que se ganha a certeza que a pessoa que escreve um texto é aquela que sabe o alfabeto inteiro. É um ato de pura humanidade. Falta isso, falta a aposta na confiança, falta a palavra, falta a verdade, falta a noção de durabilidade de um posto de trabalho. Uma empresa só deveria ser valiosa se fizesse sentir os seus colaboradores valiosos. A felicidade é o índice mais menosprezado e mais calado com um par de notas. Será sempre mais fácil enumerar requisitos do que entender que há centenas de pessoas estagnadas por nunca lhe terem dado a mão. Passamos de bestiais a bestas e o nosso traje académico fica amarrotado nos arrumos de casa.

Desvendou-se o mar mas perdeu-se o império.

Estamos povoados pelos que não conhecem o peso da nossa bandeira, que não têm no sangue da sua língua os nossos termos arcaicos, nas nossas varandas já não moram os mesmos vizinhos, os que nos emprestavam massa ou os que nos guardavam a chave da porta. A própria porta é já uma descaracterização do tradicional e autêntico bairro português. Assistimos a protestos contra políticos que nem são os nossos ou de causas que não as nossas. Chega de acolhimento desmedido. Portugal vai explodir em população, pobreza e criminalidade. O que resta dos jovens? Resta a fuga forçada. 

Desvendou-se o mar mas perdeu-se o império.

Somos como gado encostado ao vidro do metro que precisa de música alta nos ouvidos para sempre acreditar que não é aquele chão que pisa. Camuflando o mendigo à direita, o que vomita à esquerda ou o perverso no fundo da carruagem. Camuflando os gritos moribundos das mães ou a infelicidade dos que vão trabalhar. Todos num limbo de melancolia a ouvir o seu som, como uma competição de quem sofre mais em silêncio. Lá vamos nós vestir novamente o fato que não nos representa, dormir no relento dos pesadelos, mostrar uma cara lavada que só esconde as chicotadas da ansiedade, novamente calar os nossos sonhos e engolir um salário como quem come contratos para não morrer à fome. Pena que não dá para arrastar o dia de trabalho como se arrastam as músicas que não gostamos. 

Desvendou-se o mar mas perdeu-se o império.

Somos cabeças de marketing andantes, com sacos publicitários ou imitações de marcas vomitadas à pressa. As piadas porcas terão sempre mais credibilidade se forem de alguém forrado a etiquetas expostas. Cuidamos mais do nosso iphone do que dos nossos dentes. Jamais saberemos sequer gerir as nossas emoções. Vivemos em casulos de lojas onde todos somos peritos em fugir do sol. Aquele quadrado superficial é como um laboratório de ratos de comportamentos repetitivos, comodistas e esquizofrénicos. Somos nós, raça humana, no seu mais penoso materialismo mascarado das velhas necessidades rotativas e desmedidas. 

Há muito que já se falava de potencial desperdiçado. 
O patriotismo dos nativos foi engolido. Por mais que existam rosas no jardim, os jardineiros já não são os mesmos. Quero que a memória do som dos sapatos pretos a bater na calçada de Coimbra me deixe de causar dor. Quero esquecer que esse galopar foi em vão. Quero que a mesma calçada me diga um dia que os meus passos foram feitos para voar. Desejo que se abracem os sonhos dos jovens como abraçam a chegada do peixe às redes. Que um dia finalmente façamos jus ao legado lusitano. Que ainda possamos ser esse mar abundante.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa