Solitude

Ouço o barco que percorreu o mundo a despedaçar-se. Há um desmoronar de uma casa. Uma panela em ebulição. Uma criança perdida. Um vulcão em erupção. Sonhos soterrados. Uma fenda a abrir. Um avião a despenhar-se. Pratos que se partem. Gritos que se ousam dar. Alguém a chorar sangue. Um gato que morreu. Um caminho perdido com pegadas perdidas. Aquele microssegundo de pó a voar em cima do meu nariz enquanto sopro é o meu tempo de solitude. Apenas esse é meu. O resto do tempo é de todos os outros que não me conhecem. Só este corpo me resta. Lamento a vida. Lamento os corpos e a gravidade que os prendeu. Somos só uma poeira que se acha invencível. Sempre quisemos ser mais, sempre quisemos levitar e fugir das forças centrípetas de que falam os livros. Mas somos só restos de uma qualquer coisa que já foi inteira. Sinto uma torção de alma, um desespero nesta prosa lírica de virtudes frustradas. Uma entrega quase carnal com o medo. O pulsar do meu coração é como o borbulhar da minha tempestade. Mesmo sabendo que são as emoções que me matam, eu quero morrer mais uma vez. Sei que não vou conseguir mas quero provar que ainda tenho forças para tentar uma última vez. Mas até lá seremos como cápsulas andantes e programadas a entrar no mesmo metro, às mesmas horas, todos os dias. Somos fantoches aos quais colocaram sentimentos só para que nos achássemos detentores das nossas escolhas. Somos um bando de encontrões repetidos, de marés entediadas, de réplicas de notas desafinadas. Somos como uma planta artificial que sonha ser real e mover-se com o sol, como uma água engarrafada que sonhava voltar para a serra. Olhamos para as tendências da forma como deveríamos olhar para uma montra de oxigénio. As cidades são como divindades que nunca souberam sê-lo. São entidades frustradas e saudosas por passados que não voltam, pelos coches que cruzaram as pontes noutros séculos, por histórias de amor que não voltam nunca mais, pelos tratados das dinastias, pelas promessas de paz, pelas primeiras pedras que ergueram toda a cidade. Hoje somos um tapete flutuante, pisado por estrangeiros que nunca ergueram as nossas bandeiras. Estamos todos perdidos e questiono se algum dia nos encontraremos. Mas ainda estamos vivos e sabê-lo ainda continua a ser uma parte daquilo que é viver. Há uma pequena nuance de plenitude na explosão interior enquanto grito. Pena que esse grito não faça levitar as casas e pessoas. Venha Moisés abrir o mar de gente que nos consome. Venham os pianos redescobrir a paz. Venha a espiritualidade revolucionar a dimensão da sensibilidade. Pois se não vierem, que venha a morte apertar a mão à cidade e limpar o nosso sangue que outrora existia antes da morte. 

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Zaask

Escritora e Fotógrafa