Mas ainda há natal


Os passarinhos não sabem quando é natal mas sabem o mais importante que é quando têm de migrar. E o natal é essa migração, esse planar em pleno voo de memórias, infâncias e afetos. Ele trás consigo também a melancolia do inverno, o afirmar de perdas, a sombra de um amor que já não se pode tocar com os dedos. Já nunca será melhor do que foi, mas ainda pode ser melhor do que a dor que a saudade carrega. Vejo-te a entrar no céu tantas vezes embora saiba que sempre lá moraste. O para sempre não é até deixares de lembrar, é não saberes o que é esquecer. O para sempre serão todos os natais em que o meu coração ainda baterá. A vida rouba-nos os entes queridos, os animais da casa, a vida rouba-nos lugares à mesa e obriga-nos a manter essa mesa de pé. Essa mesa é como a sociedade, tem de permanecer elegante, lustrosa e convidativa e jamais conhecer o luto. Mas sem avó e sem o cão da nossa infância não somos nada. Pedaços de amor que foram como pedaços nossos de carne e osso. Cada vez seremos mais despedaçados. Mas ainda há natal. Terá que restar a pele que tudo suporta e um coração ainda vivo. Terá que restar uma rosa negra fortíssima que para sempre simbolize mais do que um rasto que passou. Seremos sempre natal. Seremos sempre família e fé. Mesmo quando é difícil voltar a lembrar o que é sorrir. Não sei se dói mais sorrir ou se dói mais consentir. Não sei porque foste embora. Continuo sem aceitar porquê que do meu lado esquerdo da mesa coabita um espaço que só vive porque ainda espera por ti. A beleza espera por ti. Todos te ansiamos. Todos morremos de saudade dessa face rosada após o primeiro copo de vinho ou da manta que colocavas meticulosamente ao teu redor. Quero essa doçura de quem não sente os abalos da vida. Quero essa intemporalidade da curva dos teus olhos, essa simplicidade que cultiva flores com as palavras, esse coração quente que não conhece o relento emocional. Mas ainda há natal. E o natal resume-se ao que nos deste. O natal é um brilho cintilante que teima em pousar na janela como a geada em dias de frio, é um beijo urgente e quente como o calor de uma qualquer manjedoura que não quer conhecer outra vida além da sua cabana. O natal é o carrossel gratuito que nos leva a um nirvana sossegado onde nos olhamos a nós e ao tempo. É um vaidoso sonho de se pertencer a algo ou alguém. O natal é como a ponte romana que tem urgência em falar das gentes que a pisaram, dos ecos que a revolucionaram. A história não mora numa data, mora na pedra, mora nas gerações, nas histórias, mora no alçapão onde correram os ratos ou na porcelana que conta os anos de pó da tua ausência. No natal moram as vozes, moram as casas onde se riu, onde se cuidou, a porta que se abriu, o pão que se partiu e a lenha que nunca acabou. O natal guarda os gritos das crianças, o baloiçar das bolas e dos gatos, a gargalhada que escorregou como o vinho da casa, guarda a ternura do tapete de arraiolos, guarda o calor das lareiras e dos pés nas meias de lã. No natal mora a lua que nunca cobrou a sua luz à noite. Ainda há natal. O natal não é só dos que ficam, é mais daqueles que vão sem querer ir. Ele fala de quem ficou mesmo sem estar. Nunca será físico, sempre falará de emoções e das vozes que permanecem. Ainda há natal. Queremos morrer descansados ao saber que soubemos ser natal. Mesmo que hoje aquele casebre fale num tom fúnebre, antes já foi um palácio que falou sobre uma dança ao luar. Por vezes só temos de continuar a ser o que fomos, continuarmos a ser palácio, continuarmos a ser natal. E um dia seremos os passarinhos que nada sabiam sobre o natal mas que migram para ver os seus netos.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa