Diabólicos


Falar de ti é como falar de um tempo que nunca foi meu. Relembro quem tu querias ser, quem tu tentaste ser, mas não me lembro de ti. Foste o que não és, sem nunca te dar a oportunidade de sentir a luz. Morámos numa cabana quente onde as ondas dos teus fantasmas me tocavam nos pés e a leve brisa do meu futuro me vestia de sonhos. Arquitetaste a tua vida em detrimento de pegadas que o vento outrora apagou, viciaste-te no peso da tua cruz, construíste uma estátua individualista que me fez sombra nos dias de inverno, e mesmo assim o meu coração estava pronto para amar, para socorrer essa pedra construída à pressa. Se eu ficasse ter-me-ia magoado. E aí seria parte de uma projeção egocêntrica que sempre se esquece do resto do mundo. E nós sempre fomos mundo. Amar é ser-se mundo, é ser-se inteiro. Relembro as vezes em que te olhava nesses olhos dóceis e tristes, em que te beijava esses lábios inquietantes de sabor a maresia, em que te abraçava nesse corpo delicado mas fogoso. Fomos esses corpos de cerâmica partida com a certeza de nunca termos sido admirados. Gozámos da nossa fragilidade, rimos dos nossos poros, e o abraço mais quebradiço e frágil sempre pareceu o mais poético. Fomos diabolicamente felizes. E era no esplendor da tua dor emocional que o teu peito mais parecia reluzir ao acariciar-me e querer-me falar numa linguagem de algodão, como quem diz um segredo baixinho para o resto do mundo não ouvir. Eu quis ser esse esplendor em que a tua dor tentava falar. Quis ser a urgência do teu porto seguro. Quis desenrolar esse novelo de emoções até ao último milímetro de lã. Quis procurar o destino das sensações mas também a sua origem. Quis ser como aquela parede quente num final de um dia frio. Quis a tua dor. E se quis que chorasses era porque queria ter a certeza que eras real. Sabes que sempre tive um certo fascínio por tempestades. Sempre adorei a arte e a ousadia do vento em remexer as cortinas do mundo. Quis ensinar-te que o amor não pertence à prisão de sermos ou não merecedores do que quer que seja. Aceitar o amor é aceitar uma jornada humana, é aceitar sermos melhores. A dor é humana e a sua descodificação ainda mais o é. Fomos o infinito. Fomos ardentes. Fomos noite e dia. Fomos diabólicos. Fomos espiritualidade. Fomos a fórmula que qualquer fragrância inveja, a instância que qualquer relógio anseia ser, a perfeição de silhuetas que toda a Vénus idealizou. Éramos uma bolha furtiva e inseparável, forrada com a beleza da fragilidade e dominada por um eco de esplendor. Nunca fomos voláteis como o fumo dos cigarros que fumaste. Preferia olhar-te a mergulhar no mar em vez de ler o meu livro favorito. Sempre preferi incluir-te. Fosse dor, fosse amor, tu pertencias àquele território. Gostava que enfrentasses as ondas emocionais da mesma forma com que enfrentas o oceano e percebesses que esse passado é belo por ser teu. Existe alma nessa história. Aquilo que nos define é aquilo que sentimos. Nós somos o que sentimos. E o que sentimos é aquilo que escolhemos viver. O que é belo sempre é simples. A natureza ensina-nos isso mesmo. Ela vive em função do sol e não padece de um ciclo doentio e repetitivo. Também existem estações do ano e nada é rigidamente programável como autómatos mutilantes e disciplinados numa guerra qualquer em que te destróis primeiro do que àqueles que atinges. Em que momento deixámos de ser essa simplicidade? Em que momento deixámos de ser a pátria do corpo um do outro para sermos só um leve fumo de saudade que já nem sequer vicia? Eras um belo poema, mas fizeste-me sentir uma analfabeta. Como se voar fosse proibido. Como se eu fosse proibida. Fico estupidamente desprotegida sem sonhos. Cada vez sentia mais que aproximar-me de ti era como chegar a uma festa em que não fui convidada. Foste sempre só a capa e uma sinopse por explicar. Foste esse fumo de cigarro queimado no passado, a persistir como um incenso fora de época. Sinto que nunca soube a que lugar pertencia quando nem tu te pertencias, como um corpo flutuante que faz do naufrágio a sua jangada de vida. Sinto que fui uma história não datada que só serviu para curar um passado incurável. Não basta a cura quando não se quer ver a cura. Eu quis ser mais, seres de luz merecem ser mais do que um corpo esquecido, hipnotizante e desencaminhador de um qualquer código binário que só aceita o seu universo e o seu passado. Uma rotina que te será eternamente infiel, porque todo o ritmo doentio das coisas a que nos agarramos irão sempre falhar conosco porque nós somos a falha. Eu não fui mais forte que o teu passado nem tu do tamanho do meu futuro. E hoje somos um qualquer território em decadência, que chora ao relento pelo dilúvio das nossas próprias lágrimas. Fomos como uma lacrimosa que toca num funeral da realeza, como a catástrofe merecedora de ser a desafinação mais bonita em noite de lua cheia. Como uma sublime conspiração a favor dos danos do tempo. Serão tão poucos a saber de nós. Saberão os nossos lençóis que insisto em não lavar, saberá a janela desafinada que chiava quando nos encostávamos, saberão as gaivotas que hoje cantam como um coro estridente, saberá o sinal vermelho de trânsito que nos parava o tempo num beijo inconsequente, saberá para sempre a nossa pele que foi a pauta lírica desta bonita música. Terminou a nossa jornada ali, diabolicamente, numa loja de velharias, como uma viagem no tempo, onde restou um velho coração que já nem por amor se vende. Saberás tu do que foges? Ou somente esqueceste o que já encontraste? 

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Zaask

Escritora e Fotógrafa