Quantos morrem naquele que morre?

A morte deixa tantas promessas: aquelas que me fizeste em vida, aquelas que eu te fiz quando ainda acreditava na eternidade e todas aquelas que hoje fazemos entre a vida que me resta e a vida que te sobrou. A morte é como um testemunho de amor que passa entre gerações. Muitos morrem naquele que morre, outros anseiam morrer e outros permanecem céticos o resto da vida. Poderia dizer que eu morri em ti mas prefiro assumir-te que muito de mim nasceu contigo e que quero prolongar mais um bocadinho o teu legado na terra. Mas a saudade distorce tudo isto no remoer do dia a dia. Com a tua morte morrem multidões de flores, morre o tempo fértil, morre o sorriso das pupilas, morre a frescura das novidades, morrem os campos, morre a leveza da vida. Restam fósseis emocionais, a quem já nem o tempo reconhece vida. Restam as arestas das fissuras de um molde sentimental que representa tudo o que de ti há em mim. É na sede do deserto que mora a minha vontade de ti. É o chorar sem querer enquanto se respira. É o estremecer sempre que a vida me confronta com a informação não integrada de já não estares aqui. É o nascer de um rosto pálido, de um véu negro que eu rejeito. É o sobrevoar de um corvo mudo porque nem ele ainda consegue anunciar a tua morte. Sinto saudade desse olhar ainda tão vivo na fotografia cheia de pó. Sinto ciúmes de um passado que já só existe na tinta preta do quadro antigo ou no pêndulo do relógio de madeira. Sinto ciúmes dessas porcelanas que te observaram toda a vida, desse tapete acariciado por ti ou do leque que te refrescou em dias de verão. Sinto ciúmes dos teus chinelos brancos que confidenciaram com a tua pele, da máquina de costura que assistiu de perto ao teu talento. Sinto ciúmes da parede que ficou por pintar porque ela não reflete a passagem do tempo, mas os meus olhos tristes sim. Ninguém a quis pintar para que a tinta não levasse mais um pedaço das nossas memórias. Mas é a parede por pintar que me faz acreditar, sempre que rodo a maçaneta, que ainda te vou encontrar mais uma vez. Eternamente mais uma vez. A parede é tua, é o teu património. Só faltas tu e o teu avental cinzento. Só falta recuperar o passado. 

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Zaask

Escritora e Fotógrafa