O que esconde aquilo que restou?

Não se trata de chorar aquilo que levam de nós, mas de garantir que mesmo sem bagagem continuamos a ser tudo. Que mesmo sem ter continuamos a ser. Se não for para ver beleza na simplicidade então nada será mais belo do que isso. Atira o romance que tu criaste pela janela, deixa de folhear o ilusionismo que te deixou tonta. A história existiu porque tu a escreveste, porque insististe no amor mais uma vez. Não haveria história se tu não sentisses tanto. Projetaste uma guerra emocional mas esqueceste-te que as balas eram reais. Escreveste a história como um vencedor de guerra que calça as suas botas sujas mais uma vez e relembra as sensações heroicas, sem se aperceber da sua dependência às memórias e escondendo uma certa decadência emocional. Mas só assim te conheço, comprometida com os teus estados interiores, amante da intuição e sempre a olhar o amor como esse estado lendário que não cansa. Serás sempre a metáfora de um romance de cabeceira, em corpo e alma. Mas tu choraste, choraste muito. Foram páginas, foram meses, foi poesia em vão. O que sobra da folha rasgada e do verso que nunca rimou? O que sobrou de ti? O que sobrou da eloquência do Homem? O que sobra dos lábios que se beijaram? Das promessas que se arrastaram entre os dedos e a pele? Quem será o mais fraco, quem ousa ficar ou quem ousa partir? Não era ele, nada era sobre ele, mas sobre a metáfora que ele representava. Ele simbolizava a rejeição, ele era o eufemismo de tudo aquilo que jamais poderia ser dela, de todas as dores insuportáveis. Era desse amor descaracterizado que ela padecia e escrevia porque nunca gostou de clichés e até a dor esporádica a alimentava. Tudo seria mais fácil se ela fosse cética, se ela não achasse que tudo no amor pode ser épico e determinante. O problema sempre foi acreditar. Ela era a própria crença, todo o espetro de sensações, toda uma luxúria emocional, a honra de sentir mais que todos os outros, um diamante que não se permite lapidar e que conta histórias de amores selvagens, românticos e cegos. O que sobra dessa busca pela felicidade? Dessa raiz que brota sem água? O que sobra de um coração que perdeu a memória de ser amado? Esta história foi como colar os cacos de um vaso que para sempre irá estar partido e que deixou de o ser há muito tempo. Convencia-me que era só um padrão bonito, que os cacos se tornaram convencionais, sem me lembrar que ele nunca suportou nenhuma flor. O amor às vezes é isso, é querer que ele suporte alguma coisa, sem que haja essa coisa. Existe uma contínua busca pela beleza, pela vaidade de amar. O que sobra nesse eco onde nada floresceu? Onde nem um bilhete escrito foi deixado? O que sobra daqueles que amam por dois? Haverá sempre lugar para cada um de nós. Para o que vagueia na rua sem direção e é feliz sem o saber, haverá lugar para o que só se vê a si mesmo depois de uma garrafa de vinho. Não existem perdidos ou encontrados, existem os que renunciam de certos caminhos, os que preferem o sonho e os que preferem a lucidez. Mas creio que no amor estamos todos perdidos, ou por negá-lo ou por persegui-lo. O único caminho certo é o caminho de volta a casa, que nos relembra de quem somos. Em todos os outros caminhos somos só nós a querer voar. A vida cansou-me. Hoje sou muda. Sinto que o amor já não é o agora, já não é um papel para ser meu. Sinto que o amor é como uma jangada que levou as minhas roupas, que me despiu e me arruinou a crença de que existe um porto seguro. Mas às vezes sinto que ainda vivo na utopia em que um par de borboletas ainda se irá cruzar. Não sei se sou essa borboleta, se sou esse caminho de volta ou o oxigénio do seu ar, mas creio que possa ser a força das suas asas. Muitas vezes só gostava de ter ouvido um "não soube fazer diferente". Que me explicassem que os seus braços encurtam na hora de amar. Que não fui eu, nunca foi sobre mim, mas sobre a vossa incapacidade de amar. Só precisava de ser elucidada acerca do óbvio. Vivemos numa sociedade que não nos leva a jantar ou a ver o pôr do sol, contextos aparentemente menos intimistas mas ao mesmo tempo muito mais do que alguma vez seremos na casa uns dos outros. Sempre foi à janela que se proclamaram os grandes amores, sempre foram os poemas que uniram corações. Não havia falsas promessas, havia corações que batiam e corpos que escolhiam ficar. Que neste mundo fútil eu possa ser só a rapariga apaixonada perdida numa festa qualquer e que ainda se comove com a lua. Apaixonada não sei por quê ou por quem, mas simplesmente só e apaixonada. Diz-me apenas, o que esconde aquilo que restou de nós? Sentimos sempre que sobrou pouco da nossa história, mas aquilo que resta será sempre tudo o que não foi dito, tudo o que foi reprimido ou ocultado. A imensidão de algo sempre foi medida pelos seus destroços. Já diriam os sismos e o amor. Também aqui os destroços sempre falarão mais daquilo que foi do que aquilo que ficou escrito. E o que sobrou de mim? Sobraram madrugadas não cumpridas. Sobrou um coração ao relento com as suas dores a céu aberto. Sobrou o abandono e a bruta solidão. Mas o que realmente sobrou de mim? Sobraste tu. És a parte de mim que insiste em ficar. 

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Zaask

Escritora e Fotógrafa