Apocalipse

Ali, acabou. É o apocalipse. Ali morreram as pessoas que se esqueceram delas mesmas, dos pais, dos parceiros, dos filhos. Mas antes esqueceram-se do amor. Pessoas que foram como a areia de praias erodidas, cuja erosão do próprio tempo acabou com o mar que as regava, com a generosidade de quem as cuidava. Morremos todos tarde demais. A lua deixou de iluminar as ruas em todas as noites que não se falava de amor. Formaram-se desfiladeiros em cada sítio que se negou um abraço. Afundaram-se os barcos cuja partida não deixou saudade. Morreram as florestas que deixaram de ser visitadas. Tornaram-se húmidos os becos onde se deixou de comprar flores. Para muitos o amor era só o percorrer de uma praia que pudesse deixar pegadas, não por ser poético mas porque o amor serviu muitas vezes só para emancipar uma força que não temos, para nos popularizar, para mostrar ao mundo que também soubemos traçar esse caminho, para vender a vaidosa metáfora dessas pegadas. Foi só para isso que elas serviram. Não para contar uma história, mas para a destruir antes dela começar. O amor não era sentido, era usado como um passaporte de padrão populacional. Somos tão medíocres em nos render à aparência. Morremos todos tarde demais. E não sei como, sem amor, o sol insistiu em dar-nos tantas oportunidades. E depois entendi que ninguém queria amar à luz do dia. A luz cegava as pessoas e já ninguém queria ter sequer a importância de cegar loucamente o outro. Vivíamos como morcegos que não queriam sair da gruta, que bebiam da escuridão mais uma e outra vez, num ciclo emocional egoísta, numa decadência fácil que tinha tanto de urgente como de desnecessária. Eu quis amar, eu permiti que o meu carinho fosse algo fácil de comprar, embora com muito mais valor do que o que alguma vez deram por ele. Eu quis crucificar a rotina em prol da vida, quis sentir, quis perdoar, quis conectar-me com as sensações. Mas quando és só tu há um desmoronar, uma descontextualização, um questionamento sobre o que é ser-se ilha. Será ilusão ou será a verdade que todos esperam alcançar? Como se respira sem amar a vida? Como se suporta a vida sem se suportar almas? Precisávamos primeiro de ter escolhido sentir e só depois sentir de facto, até termos entendido que sentir nunca foi uma escolha. Todos viveram a olhar para dentro, numa auto escravidão, no precipício frio dos hábitos, no flagelo da indiferenciação emocional, a remar contra a entrega, a negar a trajetória evolutiva. Perdeu-se o medo de lançar um míssil, de criar uma guerra, mas não se perdeu o medo de amar. O amor tornou-se numa arma temida, cada vez mais desconhecida e destacada para os destemidos. E quem ama é visto como um ladrão de emoções, como uma ousadia incompreendida. Como alguém que culpa quem o ama por lhe ter roubado as chaves do seu coração e só depois percebe que nem coração havia, que não havia fechadura, não havia mistério por desvendar, não havia sequer chaves nem propósito. A sociedade nunca entendia como se poderia amar sem propósito. Como poderia haver um sentimento de posse em relação ao saber que nada se tem. O amor foi uma corrente quebrada, um jogo viciado, até ser colocado num quadrante quase oculto. O mundo não aguentou e deu-se o apocalipse. Sem amor as pessoas cegaram. Deixaram de se lembrar das cores do pôr do sol, da voz dos seus avós e dos gatos noturnos dos telhados. Deixaram de conhecer o cheiro das flores, a frescura das fontes ou de reconhecer os seus próprios cabelos brancos. Deixaram de fotografar borboletas, de correr descalços pelos campos, deixaram de semear poesia nas poucas palavras que escolhiam pronunciar. Esqueceram o fumegar da churrasqueira nos domingos à tarde, esqueceram a intemporalidade dos comboios e a profundidade da música clássica. Esqueceram-se do sol e da chuva, da erva que continua a brotar e da minhoca no vaso da cozinha. Esqueceram-se de ser gratos. Não entendiam que a pessoa mais importante para eles era a sua própria criança interior. Perderam essa criança, deixaram de ser entusiastas e de andarem espantados com a vida. Nada os espantava, tudo os cansava. Perderam-se os estímulos em prol de uma vazia aceitação. Não entendiam que caminhavam numa direção não corpórea e que a degradação do corpo era exatamente a prova de que somos seres espirituais a viver uma mera experiência humana. Não entendiam que jamais os outros irão lembrar o que dissemos em vida ou o que fizemos, mas sempre serão relembradas as sensações que provocamos nos outros. Até que se criou um mundo que tanto apontava o dedo por falta de amor sem nunca se ter permitido senti-lo. Não se pode falar da ausência antes de se ter transbordado da presença. Falem mais de amor, normalizem o amor. Não falar dele em vão, mas dar-lhe doçura, profundidade e tacto. Gritar e dizer que ele não serve só para aquecer os pés, mas para erguer a humanidade. As pessoas deveriam ter-se tratado mais como pessoas, e não como invasores, como seres rasos de uma camada só. Se os olhos soubessem ver, haveria sempre uma distância muito maior a percorrer. Morremos todos tarde demais. Não chegamos a descobrir o amor. Restaram amontoados de pessoas vazias, com sentimentos amordaçados, erros e preconceitos que chocaram entre gerações irrequietas e que só souberam balizar idades e limites para o amor. Estamos a distribuir o amor em vez de o concentrar, a entregar papeis com formas de amar como quem distribui publicidade. Como quem vende conceitos fragmentados de amor, normalizando a ignorância em relação ao que ele é. Hoje em dia não se fala, não se sente, apenas se assumem papéis confortáveis. Veste-se uma narrativa em prol da acomodação. E assim a vida parece mais fácil porque nela semeamos a extrema ocultação da verdade. Uns ficam pela acomodação à rotina, outros vão pela acomodação à liberdade. Muitos não ficam por amor e muitos vão mesmo amando. Há falta de comunicação e comunicação no sentido certo, no sentido da verdade. Não comunicamos se não soubermos contar a nossa história, embora muitas vezes aquilo que somos é tudo aquilo que não está na nossa história. E no culminar dessa destruição estou eu com o vestido flutuante da princesa que nunca fui. Sinto ciúmes de um qualquer passado onde tentei delinquentemente ser feliz. É urgente o renascer. Quero ser mais um rascunho da minha felicidade. Suplico por mais um amanhecer, como quem pede outra rodada para sentir a tontura da vida mais uma vez. Estarei a negociar com o amor ou com a vida? Ou estarei, inevitavelmente, a confundi-los? 

Comentários

  1. os teus textos continuam incríeis e cada vez mais emocionantes, muito bonitos ;)

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Zaask

Escritora e Fotógrafa