Um Mundo Magoado


As roupas estão espalhadas pela casa, os pés estão descalços e a luz da cabeceira quase a fundir. O piano deixou de funcionar, o cabelo está por cuidar, há ainda uma parede por pintar e uma pele para suportar. As unhas estão roídas, os olhos taciturnos e as costas cabisbaixas. O corpo padece de uma dor gritante e a noite muda não oferece respostas. Uma noite intragável, insípida, mas euforicamente desejada. Vejo lá fora as pombas a comer os restos dos pães dos jantares snobs desenfreadamente. Somos só ligeiramente mais discretos. Igualmente desenfreados por apetites voláteis, pelo auto engano das nossas próprias dores. Aqui em casa o panorama é mais nostálgico. A roupa é colorida mas o coração não, o copo do jantar ainda tem o batom da última festa e talvez o panorama emocional continue a ser o mesmo desde essa mesma festa, seja ela de ontem ou de há anos. Porque o mundo está parado, está magoado. Estão todos prostrados a esperar por alguém do passado enquanto os restantes estão a assistir a essa teia e a ver o tempo como um penhasco que jamais os vai segurar. Até que chegue esse tempo hipotético em que seremos olhados. Como se houvesse um manto de invisibilidade a sobrevoar o mundo. Como se o reconhecimento da nossa singularidade fosse uma utopia. Como se fôssemos apenas um compasso de espera entre o passado dos outros e o nosso futuro. A vida parou. O mundo ainda dança naquela festa antiga onde os bem resolvidos não foram convidados. Pairam os dramas antigos, os refrões que já não tocam no meu velho rádio. As cassetes deixaram de ser vendidas mas é como se os rolos continuassem a dar música por aí, combatendo o pó da despedida, e querendo ser como essa estúpida fieldade aos azulejos da cozinha antiga. Porque o mundo está parado, está magoado. O mundo não avança enquanto não se varrer o pó. Nesses recantos citadinos onde as virtudes são mostradas, exploram-se todos os bares mas jamais os compartimentos interiores emocionais. Mora o anonimato em cada porta e agora também na minha. Alastrou-se o cansaço e agora todos dançamos a valsa do desassossego. A minha pele está sedenta de abraços e a minha voz rouca perdeu a fé. Sou filha das nuvens, ancorada ao céu da expectativa. Sou escrava de um qualquer chamamento obsceno, sou uma luz que brilha e que abraça a poesia quando nas estrelas me deito. Sou constelação irrequieta, sou intensidade audaciosa, sou a urgência da palavra. Porque o mundo está parado, está magoado. A solidão atropela-me e desequilibra o meu senso carnívoro. Sou só eu. Na noite sou uma dor que não consegue conversar. Sou um surto de gritos silenciosos. Sou um espasmo de medo, sou a vaidade macabra em me sentir de repente o guia dos mortos. Eu sou a noite. Sou o canto esquecido da sala esquecida, sou a emancipação da derrota, o empoderamento da angústia, o derramar dos corações negros. Eu sou a escuridão. Sou o que sobrou de amores não vividos, esperados e, por fim, esquecidos. Sou a parte que sobra mas que é muito maior do que a parte que foi cumprida. Eu sou a imensidão. Sou o galopar dos cavalos brancos, sou o véu da minha ascensão, sou a luz num mundo que só conhece a sombra. Porque o mundo está parado, está magoado. Hoje percebo que o remoinho que outrora sentia não era da paixão, era da segurança que não me davam. Não era saber voar, era não conhecer o chão falso, e dançar nele como se o amor pudesse existir em doses homeopáticas. Restou a apatia da meia noite, o copo partido da madrugada e a anestia do sol da manhã. Restou um eu solitário e melancólico e que mora afinal num mundo que não conhece. Restou um eu magoado, de tanto ser magoado. 

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Zaask

Escritora e Fotógrafa