Cordial Lamento

Quero-te falar do tempo, daquele que não é nosso, da chuva que não nos molhou ou do sol que não nos queimou. Fomos lava em erupção, efusivos e belos. Fomos políticos e selvagens, fomos timidez e ousadia. Tinhas gosto de malmequer com um travo de ventos áridos. Adorei a nossa ternura coberta de esplendor. Adorava o teu toque na minha bochecha, enquanto me admiravas. Adorei até a nossa utopia. Contigo não havia horas para existir porque existir contigo era como respirar poesia. Sabias ser doce e determinado, tinhas surtos de leveza e euforia, como tinhas surtos de dor e peso. Os teus olhos eram esse dualismo de desejo e precaução, de amor e medo. Olhavas-me como se eu fosse um quadro que só tu soubesses pintar. Mas a tinta acabou e tu foste embora. O quadro ficou por terminar e faltou um coração por desenhar. Hoje és como um cordial lamento. Como esquecer-te educadamente. Como uma derrota que só é derrota porque se temeram as espadas. Resta o lamento mas resta também o bonito ser humano que és. E que a vida te faça sentir que és especial porque o teu luto roubou-te o amor próprio. Palpitas um passado que te corrói. És uma saudade que ainda não se aceita. És o desequilíbrio, o risco insano, a loucura desmedida, para ti mesmo e para mim, que tanto te quero. Os alicerces estão em ti, por isso retiro-me. Lembra-te apenas: as respostas nunca estão no passado, nem no triunfo nem no pecado, as respostas estão à frente, naquilo que queres ser. As respostas surgem, muitas vezes, antes das perguntas. Continuas a plantar em mim pequenos surtos de sedução que me deixam confusa. Abriste-me a porta de saída mas sempre me dás o roteiro de volta. Dás sem dar e deixas-me num limbo nublado, também eu de olhos nublados. Como se tu mesmo criasses distrações para que um grande amor não aconteça, sem deixares que eu mesma seja essa distração. Talvez um dia tropeces em mim na rua e eu te diga que não seremos um grande amor mas que, pelo menos, eu tenha mais uma oportunidade de te olhar, e me despedir. Como se a nossa história fosse só isso, a promessa da despedida. Um barco à vela que sonhava ser navio. Ou um navio que sonhava ser mar. Não importa se sabes construir o navio, importa se serás capaz de não temer o oceano. Poderíamos ser clandestinos a navegar pelo mundo, poderias ter terminado a tua pintura, mas hoje somos só um rascunho que sonhava ser obra. Hoje já não lamento. O passado é gratidão, é bagagem, jamais permitirei que seja dor. Hoje já não lamento e espero ser a rosa que enfeita o museu do teu passado, não o passado dos escombros, mas o pedacinho de passado que te fez olhar para o futuro. O que me aquece é saber que aconteceu. Hoje já não lamento.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa