Prosa Cega

Mora uma insónia na chuva quente de verão. Mora a nostalgia do tempo quando recordamos. Não os sítios, mas os tempos. São as sensações que ficam e a memória do que fomos. Abafa-me a sedução dos sonhos e assusta-me a minha falta de coragem em relação ao futuro. Sou um coração que cala mas não esconde, que quanto mais se trava, mais se eleva, e quanto mais se eleva mais se torna na constelação de um naufrágio onde eu mesma me perco. Um coração brilhante que cai no desencanto do mundo. Um troféu de solidão. Uma derrota consistente com a sátira do mundo. Nunca ninguém está preparado para o que sou. Tenho desejos infinitos, sentimentos incompreendidos, surtos que me fazem querer mudar o mundo. Será que um dia isto será simples de entender? Sou a tempestade que o mundo ainda não viu, a eloquência que até as flores persuadiu. Sou um tipo de amor que fala em versos de natureza, sou a obsessão pela paixão, pela valorização, sou a pele que quer emanar presença, sou o amor que pede para respirar. Sou um vulto amarrado que vive na claustrofobia da ausência de amor. Sou um fruto fora de época, uma folha rasgada que se diluiu na chuva, sou a serra onde sempre neva, sou o afeto que se perdeu na memória de alguém. Sou a flor que não espera pela primavera, com sonhos sem um compasso de espera. Sou o vento que sonha em ser sólido, que quer trocar o mundo por um único porto de abrigo. Vivemos na Era de amar e partir. Valoriza-se o que acontece ou o que não acontece, em vez de se valorizar o que somos, o que é intemporal. Fala-se através de linguagem material e corporal. Jamais se fala com linguagem temporal e substancial. Fala-se de descarte, usam-se termos casuais e isso não é nada mais do que normalizar a efemeridade. Descartem mas não avisem, só para que o meu sonho dure mais um bocadinho. Deixem-me ser ilusão. Não pronunciem nas bocas do mundo que é normal querer algo de curta duração. Prefiro que não digam para que continue a ser blasfémia. Eu sinto o cansaço permanente das gerações. Sinto que as pessoas não são inconstantes mas que o escolhem ser connosco. Sinto que todos somos a fuga que não sabe do que foge. Todos somos sem sermos. Todos ficamos onde não estamos. E seremos sempre apenas uma imitação incompleta do que desejamos. Amaremos sempre as causas que nos fazem lutar em vão. Amaremos tanto a utopia que passaremos a ser essa utopia para o mundo e para nós. Seremos inacessíveis e frios. Deixaremos de ver o sol e seremos o eclipse das emoções. Leio a receita do veneno, anseio a próxima queda, choro a dançar e vivo uma espécie de humor negro flutuante. Vivo o vazio de alguém que partiu ou de alguém que nunca surgiu. Entro num capítulo patológico onde a carência me leva a projetar histórias de eternidade. Imagino alguém hipotético que me faz sentir tudo o que não é hipotético. Imagino essa amostra de eternidade, esse tributo ao tempo, esse sonho massificado. Imagino um aroma que os perfumes invejam. Imagino uma obra que nasce antes dos artistas, uma arte que já existe antes da sua conceção. Imagino a criação. Imagino-me a mais um passo da meta, mais uma gota no oceano. Para que um dia o possamos chamar de oceano.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa