Caminho de volta

Quero voltar a jogar à macaca nas traseiras da escola ou comprar nos chineses o elástico de saltar ou outra tendência qualquer de infância, quero voltar a comprar no café santal de maçã ou discos de chocolate branco, quero voltar a fazer castelos de lama ou esperar pela boleia dos pais só para descer a avenida, quero voltar a usar aquele shampô da garnier que cheirava a fruta fresca ou tomar banho de mangueira no quintal, quero voltar a explorar casas abandonadas ou andar de bicicleta nas garagens, quero voltar a encher-me de orgulho por fazer os trabalhos de casa ou por ceder as respostas à minha melhor amiga, quero voltar a sentir-me importante por ter permissão para sair da escola nos intervalos ou por ser amiga de todos os funcionários, quero voltar a lutar com o meu irmão ou a assustar os meus pais quando eles cheguem a casa, quero voltar a cair da bicicleta ou a fazer o pino no jardim, quero voltar a jogar ténis de mesa nos intervalos das aulas ou simplesmente ficar no sítio mais frio da escola a ver os outros passar, quero voltar a acarinhar a nikita e o benny ou a relembrar através deles como é bonito o amor dos animais, quero voltar a ver o noticiário das sete da manhã ou a lavar a cara com água gelada, quero voltar a beber coca cola todos os dias ou a fazer bolos aos sábados à tarde, quero voltar a festejar o halloween ou disfarçar-me só por querer festejar a vida. Quero entrar no caminho de volta, quero ser esse caminho de volta. Quero voltar a ver a neve na minha terra ou a água do meu tanque congelada em manhãs de inverno, quero voltar ao tempo em que não se falava de aquecimento global. Quero voltar a usar bombasine e camisolas sem forma, porque naquele tempo ainda não se falava de vaidade. Quero voltar a desconhecer as asneiras que estavam escritas nas paredes dos túneis porque naquele tempo ainda não se falava de rebeldia. Quero voltar a brincar na terra ou a desenhar nas agendas porque naquele tempo ainda não se falava de riqueza. Quero voltar a olhar para a criança ao meu lado e vê-la como alguém como eu, porque naquele tempo ainda não se falava de competição. Quero voltar a poupar para comprar gomas ou gelados, porque naquele tempo ainda não se falava de prioridades. Quero entrar no caminho de volta, quero ser esse caminho de volta. Sou essa inquietação da saudade, essa sede permanente de beber o passado. Sinto a nostalgia presa à criança que fui, à terra que pisava a correr feliz. Aos braços que me aguardavam nos finais de tarde. Ao amor vagabundo que me assolava nos olhares sonhadores. À competição vazia comigo mesma porque a responsabilidade era apenas um alvo dos adultos. Sinto uma mágoa viciante que me relembra do quanto fui simples, do quanto fui eu, de como as coisas bonitas já nasciam garantidas. As flores brotavam sempre na primavera, o aniversário da minha avó sempre acontecia todos os anos, em todos os setembros existia o cheiro a livros novos, em todos os julhos existia a liberdade do verão e a sensação de missão cumprida, em todos os agostos existia mais um fogo de artifício nas festas da vila, em todos os sábados existia o aspirador barulhento pela casa fora, em todas as manhãs de inverno lá estavam as natas do leite a querer aparecer quando nos esquecíamos dele no fogão, em todos os verões existia sempre aquele escaldão crítico, em todas as feiras sempre existia a regueifa tão aguardada, e em todos os dias existia a promessa de ser feliz. Não o saberia ser se não conhecesse a minha própria inocência, se não provasse o meu próprio ritmo lento de infância. Saboreei cada passo sem me preocupar com o tempo. Ser-se feliz é esquecer-se do tempo. Amar é construir esse tempo. Não estabeleci metas, apenas vivi. Não conhecia a palavra futuro, conhecia apenas aquilo que eu era no presente. Não saberia o que seria ser fortaleza se não sentisse a leveza dos teus campos, não aprenderia a dançar na chuva nem a sorrir face ao perigo da noite. Não saberia o que seria humildade se não olhasse à grandiosidade dos abismos das tuas montanhas e à pequenez dos teus habitantes. Não saberia o que seria fé se não visse nevar após tantos anos da sua ausência. Não saberia o que seria ser bom se não explorasse essa minha própria essência. O que é exterior é apenas isso: exterior. E se a maldade é exterior, então só tem de permanecer no lado de fora. Do interior cuidamos nós. E que cuidemos como uma criança cuida de um pássaro, que sejamos essa criança pela vida fora, que sejamos intuitivos e sensitivos, mas que façamos o bem por nós e pelo nosso redor. Mostremos ao mundo que para se ser um adulto feliz é preciso ser-se primeiro uma criança feliz. Sejamos essa criança que ensina os adultos a serem adultos. Que sejamos mais mártires das emoções do que da nossa profissão, que saibamos o valor do elogio e da ofensa, que não esqueçamos o conceito de bom e mau, de justiça e crueldade, que da mesma forma que uma criança pode ser destruída por ouvir as palavras erradas, também um adulto o pode ser. Também um adulto exige empatia. Emoções e sensibilidade não são das crianças, pertencem ao mundo dos vivos. Quero erguer esta mensagem de simplicidade, pureza e amor, e levá-la aos adultos sempre que possível, porque em mim mora uma criança que já aprendeu a soletrar. Em mim mora uma criança feliz e que é feliz por já ser adulta e o adulto que mora em mim está feliz por ainda ser criança. Quero entrar no caminho de volta, quero ser esse caminho de volta.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa