(C)ALMA

Falaríamos do tempo se o tempo nos acompanhasse. Falaríamos de promessas se elas, hoje, estivessem cumpridas. Falaríamos das cartas se elas não tivessem sido escritas à pressa ou se, hoje, não estivessem rasgadas. Falaríamos de uma eterna primeira vez se, hoje, os espaços físicos não fossem a única coisa que restasse. Falaríamos do vento se ele não tivesse ocupado o lugar do sentimento. Falaríamos de amor se ele, hoje, ainda fosse nosso ou se alguma vez o foi. Falaríamos de saudade se ela não representasse a tua voz. Não existe nada mais longo que a saudade. Jamais o corpo do eco conhecerá a solidão de uma saudade. A vida é uma oscilação de certezas. Um futuro incerto e logo após uma morte tão certa. A morte dos que vão e a morte dos que ficam. Navegamos pelos acontecimentos porque também somos meros acontecimentos. Somos páginas que não foram lidas, tratadas como cábulas para ascender a algo fácil. Somos o calor do café que não se chega a beber, somos a insónia dos fracos e o troféu dos fortes. Somos bússolas enterradas em praias desertas, náufragos do nosso próprio cansaço, admirados por sermos loucos mas culpados pela nossa loucura, procurados por sermos belos, mas esquecidos por só em nós verem beleza. Somos os gritos dos amores que foram. Somos a alma dos amores que estão por vir. Sinto que carrego a dor do mundo e a de vidas passadas, porque esta dor não pode ser só minha. Mas igualmente carrego o amor de outras vidas, porque a sua intensidade não pode vir só de mim. Sinto um amor estupidamente puro, soberbo e latejante. Sinto que a sua definição de plenitude não teve tempo de se reunir tão inteira numa vida só. Sinto que o amor é uma bagagem que trouxe de um outro comboio. Um conceito desconhecido por aqui. Um conceito que assusta, que fere, uma coisa bonita e que aqui é vista como uma arma sem sequer estarmos em guerra. O amor é fruto do tempo. Do nosso amadurecimento de alma. Não apenas das pessoas com quem nos cruzamos, mas fruto do nosso autoconhecimento. Aqui as componentes carnais lideram audiências mas é a alma que fala muito mais sobre o ato de dar tudo. Aqui ousa-se usar o físico para se omitir a verdade, para se abafarem desejos reais, porque intimidade passageira é uma forma de colocar intensos e não intensos na mesma linha, é uma forma de atenuar responsabilidades afetivas. Padronizamos a expectativa pelo medo de descobrir almas. Eu sou fruto do tempo da minha alma. Eu vivo de deslizes, eu vivo do risco de partir o coração mais uma vez. Eu vivo sedenta por conexões. Pela conexão. Jamais pela utopia. Nunca será aconchegante se existirem muralhas, nunca será real se existir decadência. Creio que o sonho é como uma realidade individual que se veste de corpos humanos para se tornar palpável. Como se o próprio sonho tivesse consigo a vontade de sonhar em ter pés para calcar a terra. Esse sonho é a nossa alma. É nessa convergência que a alma emana corpo e que o corpo emana alma. Como se ser-se humano de repente deixasse de ser comum. 

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Zaask

Escritora e Fotógrafa