O que as montanhas me dizem


Há vínculos que representam tudo o que mora além do físico, tudo aquilo que de orgânico só tem a terra e as nuvens. É um aconchego de alma, é onde a vida sabe ser pura, é onde pertences. Sentes que a simplicidade que te envolve é apenas um prolongamento de ti. E isso é estar em casa. 
Paira uma esfera pesada de memórias, uma doce e cruel saudade a morar na atmosfera, um denso fragmento sádico de sonhos inacabados. Voa uma vontade de ser feliz, uma resiliência soberana e uma fé implantada pelos que foram. O passado beija-me a face e a gratidão protege-me do relento da noite. Aqui nenhum frio é gelado, nenhum campo é árido de vida e em nenhum ponto se perde o horizonte. Há sorrisos a galopar na calçada, há abraços a borbulhar nas aparições da noite, há sensações ainda a fervilhar como da primeira vez. Há passarinhos inquietos por entrar na janela do sótão, enquanto os ratos felizes correm em busca da noite e os cães ladram a pedir um novo dia. 
As montanhas falam-me dessa paz que teima em chegar. Falam-me de anjos que reinam no coração, de infâncias felizes a brincar na lama ou nas garagens, de uma inocência perpetuada no tempo, de um olhar singelo perante a complexidade da vida. As montanhas falam-me da essência que insiste em brilhar. Falam-me das estrelas que batem na janela sem pedir licença, dos olhos que captam aguarelas de todas as cores, das andorinhas que vestem o vento de liberdade. As montanhas falam-me sobre um povo. Falam-me sobre os galos das quintas que dão a boa nova ao amanhecer, sobre as estradas de paralelos antigos onde se fazem as feiras e se levam os filhos à escola, sobre os bombeiros que dão a vida pelos outros. As montanhas falam-me sobre sonhos. Falam-me sobre um amanhã promissor, sobre a leveza do tempo e a lição de que só no cume é que não precisamos de bússula. As montanhas falam-me sobre amor. Falam-me sobre o tempo que veste os amores de platónicos, sobre o cego altruísmo da adolescência, sobre a fanática loucura que desafiava as leis do mundo. As montanhas falam-me sobre dignidade. Falam-me sobre o beijo à avó de boa noite, sobre a valentia em transmitir conhecimento a outras gerações, sobre o ninho de amor palpável que se gerou naquele quarteirão. As montanhas falam-me de Deus. Falam-me sobre a experiência humana vivida por seres espirituais, sobre o poder do sobrenatural nas nossas escolhas e que faz navegar os sonhadores, sobre os segredos escondidos nas arestas do destino. As montanhas falam-me sobre as mãos que acenam ao luar, sobre outros planetas a conspirar a nosso favor ou sobre os sonhos cor de rosa que outrora foram o mundo em que acreditávamos. As montanhas falam-me dos media que vestem o mundo de amnésia, fala-me da tecnologia que veste os jovens de anonimato. As montanhas falam-me da vontade própria das árvores, do voo emancipado das aves, da nobreza que existe nos campos áridos cor de ouro. As montanhas falam-me do aconchego do café a fumegar no inverno, da neve a pintar o céu de pureza ou do doce sabor a pôr do sol nas tardes quentes. As montanhas falam-me sobre as festas de verão onde se recebem os emigrantes, sobre o frango do campo ou sobre a toalha rota de piqueniques que viajou além gerações. As montanhas falam-me sobre o primeiro enlaçar de mãos, sobre os beijos às escondidas ou aqueles que não passaram de promessas. As montanhas falam-me dos complexos da adolescência, da descoberta do meu eu ou do atravessar das barreiras emocionais. As montanhas falam-me de um riso que faz doer a barriga, de uma imensidão de felicidade que chega a embriagar o coração ou sobre a paz do silêncio enquanto pedalo na bicicleta. As montanhas falam-me de segredos desabafados, de ecos cantados ou de danças no terraço. As montanhas falam-me sobre as modas do secundário, sobre os brinquedos que viravam vício, sobre o pó das sapatilhas após os intervalos. As montanhas falam-me sobre o melhor restaurante de pizzas, sobre as gomas que se compravam no final das aulas, sobre a semanada que se poupava para comprar gelados ou brincos. Benditas moedas que pagaram a saudade, porque o inútil de ontem é o valioso de hoje. As montanhas falam-me sobre a beleza das gerações, sobre os cumes que não envelhecem ou o horizonte que não se altera em cor ou forma, enquanto as pessoas ganham rugas e partem. As pessoas são o agente diferenciador da paisagem mas a paisagem é o nosso agente transformador. A água do jardim ali continua a correr como se nada fosse, vestida de realeza, e a transportar lucidez para quem a admira ou demência para quem a despreza. Alheia aos problemas humanos, mas nunca anónima na sua importância. As montanhas são o meu berço, com as formas e os declives que eu própria lapidei enquanto bebia da vida. Existe perfeição nessa assimetria porque existe amor em cada impressão digital. O amor está escrito nas montanhas e as montanhas falam daquilo que nelas se escreve. Elas nunca mentem.

Comentários

Zaask

Escritora e Fotógrafa