Plenitude



Era uma tarde quente de verão, daquelas que não exigem brisa para se tocar, apenas um coração para se sentir. A plenitude era a premissa. Atinges a plenitude quando deixas de esperar que o mundo te retribua. É como um nirvana emocional que te defende da expectativa. Sejamos gratos pelo muito que nos acontece, mas principalmente pelo pouco. É na pequenez que aprendemos a humildade da grandeza. Vejamos apenas a vaidade na natureza porque foi através dela que o ser humano aprendeu a ser belo. As montanhas e os passarinhos não querem saber da mentira dos Homens, preferem ocupar-se com a sua própria verdade. Abracemos a perfeição do presente em vez de a procurar em tudo aquilo que não temos. Sendo ou não sendo génios, a verdadeira genialidade está na identidade. Passei a entender como as dores tanto nos falam de amor. O medo tanto nos fala de aventura. As cartas rasgadas tanto nos falam de história. Um céu cinzento tanto nos fala de vida. Entendi que tudo o que agora é dor, é também felicidade num outro plano paralelo. Vamos esquecer-nos da extrema incoerência do amor, vamos lembrar de todos os verões e de tudo aquilo que foi hipotético. Amemos a blasfémia de sermos felizes, a individualidade pré determinada, a solidão do nosso sangue, a escuridão dos nossos órgãos. Amemos a pintura de aguarelas incolores, a estátua sem rosto do amor, amemos a vela apagada pelo vento, o ninho onde não nasceram andorinhas, amemos os lagos que nunca viram o mar, a relva que cresceu sem jardineiro, amemos o barco encalhado e sem peixe, a derrota das gazelas nas savanas. Amemos o inóspito, o vazio, a ausência de dor e expectativa. Amemos as trevas porque só aí saberemos amar. Vai, atira-te. Só não te esqueças de sentir, porque existe sempre uma amnésia da sensação. Lembraste do que pensaste, da imagem visual, mas não sentes o tacto, o arrepio original da espinha, sentes apenas um estremecer oco e genérico. Por isso não desperdices a oportunidade de sentir e te libertar. Saboreia o fruto proibido mas não o desejes. Não adotes sorrisos, adora-os apenas. Desenlaça-te de enredos. Sente sem absorver, parte sem bagagem, voa sem bússula e não esperes nada de cada rota. Espera apenas por ti. Não comuniques por palavras, comunica por sensações. Não eternizes aquilo que é feito somente para ser sentido, não para fazer sentido. Não ames pessoas, ama momentos. Não ames contratos, ama o sabor da probabilidade. Ama as tempestades da vida, ama a tua hipótese de escolha, só não ames pessoas. Ama anjos, ama aqueles que partiram. Não ames os que ficam e te sugam amor, ama os que partiram e te somam o amor da saudade. Desenha a loucura entre dois lábios, a vaga promessa entre duas palavras, desenha o pôr do sol entre duas pupilas, o infinito entre duas noites, desenha a virtude da mudança, a altitude da liberdade, desenha o adeus entre dois cais, só não sofras nesse cais. Não precisas atracar enquanto podes navegar. Sê como a gaivota livre que escolhe não pousar na varanda do hotel dos estrangeiros e prefere voar sob os sonhos de todos os turistas da terra. O voo fala de plenitude. E o maior voo é aquele que fala sobre querer ficar. Fala da liberdade que não acontece por descuido, mas da liberdade que ascende da emancipação. A liberdade que somente escolhe pousar em gaiolas abertas, de criatividade translúcida. A liberdade que não passa através de portas, mas através do oxigénio, a liberdade que não se alimenta do pão dos turistas mas dos sonhos deles. A plenitude é omnipresente. Sonha de forma luxuosa e vive esses sonhos com ostentação emocional. Mas vive-os individualmente, sem esperar que eles te levem à realização de outros sonhos. Não sejas calculista com a vida e manipulador com a natureza das coisas. Deixa a flor brotar e o sol nascer, com a mesma calma com que acordas de manhã. Admira o rio sem querer a sua foz, colhe rosas sem vaidade, usa um vestido sem ousadia, grita sem raiva, respira por gratidão, sê feliz por necessidade. Ama a plenitude de seres tu e não outra pessoa qualquer. Não procures atalhos egoístas para que o amor surja depressa, aceita o lento navegar das ondas, porque só nesse processo sentes a silhueta dessas ondas e permites a descoberta do teu próprio brilho interior. Como é bela a probabilidade de termos em nós todos os caminhos possíveis. Plenitude é isso, é não ter para onde remar, é ser nómada de emoções, é ser a metáfora de uma bonita derrota. Percebi que plenitude não se trata de uma equação confusa ou religiosa, trata-se de uma gratidão habitável, um ar leve que rima com o compasso do mundo, o ponto em que o silêncio interior dá as mãos ao barulho exterior. Plenitude é aceitar a vida tal e qual como ela é.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa