Telhal´17 ♥


Vou falar-vos de uma comunidade ou recanto canalizado para o foro psiquiátrico constituído por cinco unidades, cuja distribuição de utentes se rege por idades, patologias e dependências. Trata-se da Ordem Hospitaleira de São João de Deus que é representada pelo país fora por várias casas de saúde, entre elas a casa de saúde do Telhal, aquela que vos irei mencionar. Poderia ficar a falar-vos de espaços físicos e de rotinas, de condições mentais e debilitantes, mas aprendi que a doença é quase esquecida quando se lida com seres humanos. Aprendi também que devemos separar o espaço do tempo e que o tempo de vida que ganhei naquelas unidades foi algo avassalador e muito especial. A aprendizagem. A construção pessoal. O inverter de prioridades. A valorização de gestos. O intercâmbio de ideias. Quando há um coração terno e sedento de afeto e carinho, aquilo que está escrito no seu boletim clínico é somente um acrescento. Aquilo que vemos são exteriorizações diferentes e difíceis de prever e interpretar, mas que existem em torno de sentimentos universais. O ato de pensar e sentir é igual para todos e por mais indelicada que seja a sua forma de expressão, encaremo-la como a voz da sua doença e não uma caracterização daquilo que a pessoa é ou vale. A sua voz fala por gestos, por olhares, é uma voz que chega ao coração de forma subtil mas marcante. Como uma jangada que navega lentamente e que, de forma inocente, se seduz pela ilha mais próxima e nela quer atracar. Essas pessoas têm essa capacidade, a de verem a beleza em qualquer ser humano, sem diferenciar nem rotular ninguém, querer atracar num coração alheio só porque fez do sorriso a ponte que chega à outra pessoa. O espaço que ali existe é somente um servo do tempo, e o tempo é dominado por todos eles, os utentes. Eles constroem o seu tempo e acrescentam anos de vida e sabedoria a quem passa por lá. Reféns de feridas psicológicas, de incertezas perante a vida e dúvidas sobre aquilo que são e o papel que desempenham ali e na vida dos outros, mas engrandecidos pela sua luta constante e convicta em expôr o seu coração. Mesmo quando existem pequenos laivos de violência, devemos entender que por detrás de uma pessoa que fere está uma pessoa ferida, está alguém solitário, está uma vítima de uma doença psicológica, um rejeitado pela sociedade, quando na verdade a sua desordem interior não é maior do que a desordem da sociedade. Eles não conhecem hierarquias nem vivem consoante o dinheiro e mesmo quando se mostram dependentes do café, na verdade a sua maior dependência é a do contacto humano e puro. A felicidade em ter alguém ao seu lado e a firmeza com que tocam na nossa mão, maior do que aquela com que pegam no seu café. Eles são aqueles que nunca se deram nem por vencedores nem por vencidos, são aqueles que nos recordam do quão egoístas e exigentes somos, por encararmos um abraço ou um "obrigado" como algo trivial e dito sem significado. Eles conhecem o valor real de um gesto de carinho, porque expressam a sua necessidade em tê-lo e quando o têm libertam a sua gratidão com um enorme esplendor. Nós banalizamos tudo isso ao ponto de não exigir afeto, ao ponto de negar criar laços, comportamo-nos como se fôssemos tudo menos pessoas normais. Crescemos a acreditar que a vida que levamos será garantida para todo o sempre, quando no fundo aquilo que nos separa daquelas condições físicas e psicológicas é uma linha extremamente ténue, é um colocar de pés numa escada errada, é a perda de algum familiar, é a dependência que passámos a ter de algo ou alguém, tudo porque a única premissa para se ser uma pessoa doente é ser-se um ser humano. A única condição que uma doença exige é a nossa respiração, é o estarmos vivos. Percebemos que nada na vida é garantido quando entendemos que mesmo a própria vida pode ser fugaz. É difícil a transição para a nossa realidade e ainda mais quando entramos no comboio de partida e nos apercebemos do compasso individualista que se gera à nossa volta, da pequenez humana de que afinal somos feitos. O caminhar monótono e frio. A melancolia em torno da tecnologia. A barreira psicológica e emocional maior do que a divisão física entre os bancos das pessoas. A paisagem despercebida. Os bocejos do cansaço da vida. Gera-se a vontade de fundir as realidades e acabar com preconceitos, de mostrar àquelas pessoas o quão valiosas são aquelas que deixei para trás e que vivem longe da rotina da metrópole. Agora restam as memórias e as lições de vida. Mais do que uma bonita casa de saúde, foi uma jornada única em torno de seres humanos incríveis. Quando fui embora um voluntário disse alto "-ela vai embora" e eis que um utente respondeu "-mas fica sempre cá dentro (com a mão no peito)", e aí percebi que parte de mim ficaria ali para sempre e que agora iria começar a missão cá fora, a continuidade de toda a bondade que de dali recebi.

Comentários

  1. Incrível! Tão bom ler e entender cada palavra que escreveste, perceber cada sentimento... é tão bom ter estado lá! Tão bom ter-te conhecido!
    Parabéns pela pessoa que és!

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Zaask

Escritora e Fotógrafa