Beneficência? Não, obrigado.

É irónico! Construímos estradas mais largas, mas temos pontos de vista mais restritos. Inventamos boas máquinas fotográficas, mas a nossa vida é somente a preto e branco. Há sinalização e passadeiras em todos os cantos, mas nunca iremos perder o nosso tempo a cumprimentar o vizinho da rua da frente. As montras estão repletas de saltos altos, mas continuamos tão pequeninos. Trocamos um lugar numa montanha por um lugar acolchoado num avião. Trocamos um rosnar de um animal por uma música onde reinam os efeitos especiais. Trocamos a essência natural de um prado por um perfume banal. Trocamos a fruta das árvores por um sumo de frutas com gás. E trocamos a textura de um tronco ou das níveas espumas das praias pelas teclas do telemóvel da última geração. Estamos a atravessar uma crise de valores. Não o subscrevo por ser mais uma frase vítima de forte banalização. Mas por sentir nos poros uma reviravolta no tempo, nos costumes, nos pontos de vista, nas tendências. Vivemos por entre ocorrências alegóricas, onde o perfecionismo que nos veste e reveste segue, agora, as pisadas de caminhos onde o luxo é rei e a eloquência é rainha. Quanto mais a moeda se desvaloriza, mais nós desvalorizamos os outros. Quanto mais delineados estão os estratos sociais, mais delineamos o nosso estilo pessoal para ficar no topo da pirâmide. Estamos constantemente a trocar alianças com o nosso ego. Somos os fiéis cordeirinhos do mundo contemporâneo. Os escravos da publicidade. Os obcecados das grandes superfícies. E os criadores diretos do bombardeamento de marcas. Mas até o moderno nos cansa. A riqueza nos dá náuseas. As rotinas nos tornam dependentes de comprimidos coloridos. E enfim. Vivemos tão sedentos de necessidades imaginárias que o terreno se torna próspero para uma crise de valores. São truísmos como estes que nos levaram ao auge da incúria. É sim um erro crasso. Mas as reviravoltas acontecem. Os antagonismos sucedem-se. As modas antecipam-se. E nós manipulamo-nos. Quero acreditar que um dia acarinhemos pressões alheias que nos levem a perseguir novos rumos. Que nos levem a reconhecer os prodígios que são os ditados populares. Que as vivências das nossas avós não nos passem despercebidas. E que não continuemos a camuflar-nos nos vícios. Somos todos uns grandes poetas. Uns fingidores!

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Zaask

Escritora e Fotógrafa