Haverá um tempo só nosso?


Gosto de escrever em dias frios, gosto da monotonia do sedentarismo aos domingos, gosto do primeiro raiar do sol da manhã que tanto fala de solidão, gosto de saborear o tempo, embora sempre ceda à sua amargura. O tempo não é apenas o decorrer das estações do ano, a pressa do relógio ou o vento a bater na janela, o tempo são os sonhos a esvair-se. Haverá ainda tempo para nós sonhadores podermos sonhar? Haverá um lugar ao sol na montanha ou uma ilha verdejante anónima? Haverá um tempo só nosso? Um tempo de sabor a identidade, de alma leve e com sonhos ainda a tempo de serem concretizados? Vivemos na habituação à ausência para não sentir dor. Tem sido esse o panorama emocional. Embora seja triste assumir isso, a coisa à qual mais me habituei foi a ausência das pessoas. As mesmas que passam de apostas promissoras para vultos que se vestem de fantasmas emocionais. As partidas amorosas já não mexem comigo e, por vezes, já nem as chegadas. Sinto-me inerte, a flutuar pelo que a vida me vai dando, e que em nada fala sobre constância e profundidade. Tenho pena desta falta de intensidade e verdade nas pessoas. Deste conceito de compromisso novamente tão embrionário na sociedade. Parece que tudo deixou de idealizar algo para a vida para querer só algo de momento. Deixou de se querer um coração a bater para se querer uma pele arrepiada. De repente os marinheiros largaram as rotas de grandes navios para passear a barco à vela. De repente a humanidade passou a ser feita dos destroços desses barcos deixados à deriva em que ninguém conseguiria ser nunca mais um barco inteiro. Somos todos destroços. Navegamos em mares parados, remamos neles quando ali já não existe vida. Temos fé no inalcançável. Deixámos de ser sonhadores para sermos apenas o sonho que nos move. Como um êmbolo pendurado no tempo. Como um náufrago que se agarra mais à ilha que nunca atracou do que ao seu próprio corpo. O carácter temporário das emoções é dito normal porque as pessoas normalizaram isso durante muito tempo, ao longo de gerações, argumentando a favor das fases da vida. Para mim quem nega o amor não está em nenhuma fase da vida, está fora da vida. O mundo está sedento de caráter e humildade. A terceira Guerra Mundial não será por falta de água, será por falta de humanidade. As pessoas não são bens de consumo, não vivem em montras padronizadas nem são aquilo que os outros querem que seja. E o amor não é apenas humano mas somos a única raça que perdeu anos de vida a tentar explicá-lo, por isso o amor é um objetivo humano. Ser-se humano é querer amar. E o amor foi o nome que deram à simbiose carnal e espiritual, é a resiliência em forma de sentimento, é a superação nos contornos da eternidade. Se o amor não fosse tudo isso não se chamaria amor. Creio que existe medo de pessoas honestas, pessoas que sentem, pessoas incrivelmente completas. Existe o medo de falhar quando a imensidão com que se deparam é grande. Perdeu-se a graça do desafio, a vontade de erguer mundos, de explorar outras galáxias, perdeu-se a tentativa de não deixar escapar algo valioso porque deixou de se conhecer o valor das pessoas. Mas a verdade é que apenas se larga aquilo que nunca foi nosso. Larga-se o que não se compreende, descartam-se universos por medo da sua plenitude. As pessoas parecem gostar de nós, mas não parecem compreender a profundidade que elas mesmas não têm. Às vezes o amor está muito além da compreensão daquilo que somos. Não se ama por completo quando existem compartimentos emocionais ainda por descobrir. Ecos adormecidos e desativados. Ecos que nós amamos em nós mesmos. Como uma sala cheia de flores ou o leito de um rio feito de pássaros. A solução sempre será o amor próprio. Aprendi que a única premissa sólida e estável do amor sou eu mesma, na minha relação comigo mesma, o compromisso mais eterno que poderemos experienciar. Nada menor do que eu será merecedor de mim. Contudo, infelizmente a sociedade cria pessoas sem amor próprio, essas mesmas que vão rejeitar o mundo por se sentirem a si  inferiores, sem capacidade para ler almas mais complexas, e ao mesmo tempo é essa sociedade que espera que sejamos românticos e maternais. Que espera que o amor tudo supere, quando na verdade precisamos primeiro de suportar o mundo para aprender a amar. Criaram-se famílias, cumpriram-se deveres, mas terá existido realmente amor? Olho os prédios das cidades ao sabor da noite, salpicados por luzes em xadrez, e sei que cada luz foi fruto da união entre duas pessoas. Sei que a minha luz provavelmente nunca irá falar sobre esse templo familiar. Mas em vez disso sinto-me honrada pela luz de amor que rebenta em mim. Sinto-me uma tocha num mundo de cigarros apagados. Por vezes pensei ter-me perdido por entre essas luzes galanteadoras, mas não. Na verdade nunca me perdi, apenas entrei em barcos aliciantes que me fizeram viajar para outras partes de mim. Mas continuei a ser eu, sempre eu. Os outros não são outros, nunca foram os outros, foram apenas outra parte de mim. Outros compartimentos do meu próprio coração. Eu sou a protagonista. Não sei se haverá um tempo para nós, sonhadores, podermos concretizar, mas haverá sempre um tempo só nosso para podermos sonhar.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa