(in)temporal


Oiço o piano intemporal da minha vida. Oiço passos firmes que ecoam na alma, silêncios devoradores, papéis queimados e a queimar a minha lucidez. Entro no compasso de escrita e de amor. Emerge o meu mundo sobrenatural que em nada se cruza com o trivial chão que pisamos. Sinto-me a perder o caráter físico, despida, a levitar e a ser expectadora da minha louca consciência. É então que vejo luzes moribundas de dor, os vultos assombrosos dos nossos medos, o véu negro da solidão a aquecer o córtex da nossa inspiração. Vejo grutas de escuridão a querer anunciar a luz, palavras de loucura a quererem anunciar a vida. Por momentos, sinto o medo de perder alguém que não existe, de cair nos penhascos da vida mesmo sem derrocada, de perder a voz em gritos sufocantes e imaginários, medo de não ser ninguém para ninguém. Medo de que o mundo não se lembre de mim. Sinto a efemeridade da vida aos meus pés, como um feitiço avassalador, como uma forma letal de manipular as minhas emoções e é por isso que amo, amo muito! Amo o que me rodeia porque o sentimento de empatia que se gera com o mundo é infinito, é um poço sem fundo, a forma como despertamos a consciência nos outros, como fazemos sentir o outro, nunca se apaga. O ódio que alguém te fez sentir, o amor que alguém despertou em ti, o medo, o asco, a admiração, são sentimentos mais consistentes do que as ações que essas pessoas fizeram. Por isso, o que eu vejo e sinto é um eterno amor pela vida, porque o meu conceito de amor vai sempre subsistir no canto dos pássaros, na flor que brotou na estrada, na vivacidade dos maestros das orquestras, na inspiração de um pintor apaixonado, no búzio devolvido à costa pelo mar apaziguador de uma noite quente. O amor subsiste nas coisas que também persistem. Ele é intemporal e irrefutável. E isso faz-me ver, agora, andorinhas a renascer, ouvir o canto medieval das arpas da felicidade, o eco do sino dos nossos sonhos e ver o alcance infinito das ondas da imaginação. O meu levitar torna-se, agora, num sonho límpido e tão real, onde os pianos tocam e me deliciam com a sua pauta musical, onde os sonhos coabitam com a hipótese de serem concretizados, mas felizes simplesmente por fazerem parte da consciência humana. Suportar sonhos é a mais autêntica forma de alegria, e é aí que reside a gratidão. É nesse ponto em que são soltos os cavalos do renascimento e todos correm ao longo da estrada da vida, com um requinte tão grande como o das suas crinas selvagens, com uma coragem tão grandiosa quanto o ímpeto do seu galopar. Vejo o antagonismo que uma ressurreição comporta. O misto de emoções da dor e do amor. Da explosão que é sentir a vida em mim. E é bonito sentir o antagonismo da vida, o de não pedirmos a nossa vinda mas impedirmos a nossa ida. O amor pela vida mora nesse contraste. E é nessa viragem que percebemos que se a vida é poesia, então o amor é epopeia.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa