Horizonte perdido


Foste como um vulto de meiguice que, de mansinho, se aproximou. Não me deslumbrei até ao dia em que me olhaste nos olhos. Esses olhos com luz própria que criavam uma constelação com essas sobrancelhas grossas e cerradas. A primeira onda de calor contrastou com a água da máquina que eu estava a beber, como se tu próprio fosses a sede do deserto que me saciasse. Contudo, esses dois olhos também me relembravam da tua vida bilateral, da possibilidade de ali estar a nascer uma opção dura de ser tomada, ao mesmo tempo que a proibição se levantava. Mas tu não hesitaste em chegar a mim. Essa voz baixinha e doce sempre fora a tua arma de inocência, os teus pretextos para interagires comigo sempre foram aliciantes. Lembro-me de quando a tua ousadia disfarçada de timidez era iluminada pelos semáforos daquele trajeto noturno pela cidade, como se o tráfego parasse para nos ver, como se a noite compactuasse com a minha morada. Mas infelizmente fugiste e vestiste a capa de vítima. Com a mesma frieza que aquela água que eu bebia no dia em que te conheci. Foste como aquele peixe estragado que é vendido de forma dissimulada. Fingiste humanidade e cumplicidade, prometeste que eu era um risco que valia a pena e, agora, foges desse mesmo risco quando já nem de risco se trata. Trata-se apenas de maturidade e respeito, tudo aquilo a que és adverso. Todos preferem o risco de descartar do que o risco de respeitar. Estranhos tempos estes em que é mais difícil amar do que usar. Todos os dias te encarei de frente como se todos os dias cumprimentasse o medo, fosse serviçal do meu próprio inimigo. O meu risco era outro, era o de poluir a alma. Era o de sentir uma culpa que nem tu próprio sentiste. Depois percebi que não tinha de suportar um fardo que não era meu, uma história que no fundo nem sequer foi minha. Eu não fui tua nem tu chegaste a ser meu. Ninguém é de ninguém quando o rasto que deixa em nós é efémero. Hoje percebo que nunca provei mais do que a tua efemeridade, que nunca conheci o teu verdadeiro íntimo, que nunca me agarrei a mais do que palavras e promessas vãs e fingidas. Sei que mais tarde ou mais cedo vais regressar a esse domínio paralelo, só não o faças pelos outros, mas por ti mesmo, porque a tua auto-estima deve muito à tua liberdade excessiva. Hoje sei que és um completo desconhecido que tropeçou nos seus próprios erros, em que o teu maior erro é o de não te amares a ti mesmo.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa