O lado pré-histórico da cidade

Aqui todos somos as peças de um jogo chamado metrópole. Somos o anonimato de ruas anónimas, o decair da auto-consciência, somos a ilusão da existência, o truque falhado dos mágicos, somos a globalização das relações e a putrefação dos sentimentos. Como se as emoções estivessem na sua fase embrionária, como se a sensibilidade para com o mundo envolvente fosse um traço indiferenciado ao ponto de não estarmos especializados a sermos seres humanos. Todos adoram fazer parte das histórias mas não aceitam fazer parte das consequências. Todos querem saber as nossas dívidas mas ninguém se presta a pagar as nossas contas. Há azáfama nos transportes e nos corações. Há olhares sedentos de sol interior. Há rugas de expressão não por descuido da pele, mas pelo descuido social e humano. Há manchetes a forrar de futilidades o interior das mentes. Há o cuidado com a reciclagem, mas não o cuidado com as palavras. Há centenas de rotas férreas a perseguir a lucidez das pessoas. Há passos viciados em calçadas viciadas. Há descontentamento com os pequenos detalhes e nulidade perante grandes feitos. Há incompreensão perante a doença mental num contexto em que a mentalidade se baseia em ritmos de vida pré concebidos e desumanizados. Há mais crianças mas menos infância. Há mais ensino mas menos ética. Há mais estatutos mas menos educação. Há mais oportunidades mas mais competição. Há mais requinte mas mais vícios. Há mais estereótipos mas menos identidade. Há mais floristas mas menos amor. Há mais arquitetura mas menos céu. Há mais comida mas mais fome. Há mais hotéis mas mais mendigos. Há mais festas mas menos motivos para festejar. Reparo nas entrelinhas desta azáfama aqui neste jardim, neste banco com lugar para dois, nesta vida com lugar para mim própria. Neste pranto de me perguntar quem fui, onde as crianças perguntam quem serão um dia. Neste belo jardim que representa a essência da diversidade das flores numa sociedade em que todos preferem a perfeição das rosas. Neste jardim que é a referência do meu ser, o padrão daquilo que fui e daquilo que sou, a instância do que ainda serei um dia. Nunca quis o materialismo em prol dos meus sonhos. Que nunca me falte a lucidez dos detalhes e a ousadia da simplicidade. Eu não quero conquistar a cidade quando posso conquistar as estrelas.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa