2019

Este foi o ano da despedida. O ano em que conheci a morte. Aquele arrepio dilacerante na espinha que transformou aquela última noite na cidade académica no pior dia da minha vida. Foi como ácido efervescente, como lâminas afiadas e um coração mutilado de dor e desespero. O ano em que percebi que, afinal, as pessoas não são eternas, mas eternizam-se no nosso coração. Desvendei o véu orgânico da vida e acreditei veemente que só pode ser eterno aquilo que não pertence ao mundo físico. O amor é eterno. As memórias são eternas. O legado que fica é a dádiva de quem foi. Todos somos a semente mais bonita de alguém que partiu. Foi o ano da saudade e de aprender a lidar com várias saudades em paralelo. Largar cinco anos de vivências académicas parecia ser o meu maior obstáculo, até que surge um muito mais assombroso ao qual dediquei todas as energias. Como se estivesse destinado a nunca me despedir de Coimbra, ao mesmo tempo que a vida me impediu de despedir da minha inspiração. Aprendi que os motivos que mais amas serão sempre aqueles dos quais nunca te conseguirás despedir. Aquilo que amas é intrinsecamente teu, são átomos da tua natureza, de tal forma que é impossível existir uma exteriorização e um desapego, porque todos somos aquilo que perdemos. Hoje olho para trás e percebo que o destino me quis dizer que Coimbra só fez sentido enquanto a minha deusa existiu comigo e para mim. Como se ela tivesse esperado até à última noite para me ver sorrir com a cartola e me ver a libertar dos estudos. Acreditei no destino como sempre acreditei no amor. Hoje acredito ainda mais que terei sempre um destino seguro quando partir, um abraço reconfortante, um encontro de almas que vai fazer valer toda a vida de espera. Percebi também que depois de tanto procurar essa minha luz nas flores dos jardins, nas noites em que sonhava com ela ou nas lembranças dos detalhes, que ela existia dentro de mim, em cada passo que dava, em cada gesto de amor, em cada elogio em seu nome, a cada mensagem de paz oferecida ao mundo. Não adiantava procurar no exterior aquilo que sempre estará vivo no meu interior. Esse lugar no meu coração é só teu e está alinhado com os astros e com o horizonte dos meus sonhos.
E Coimbra ali ficou a boiar nas ondas eternas do meu coração, tal como o nabo no rio Mondego, sempre com lugar especial, sempre com vivências únicas e que só eu e Deus sabemos, segredos em cada rua, tradições a revestir as calçadas, capas e batinas a alimentar sonhos, serenatas ao luar a revigorar a magia da vida, festas do recinto em que conhecíamos a felicidade de dançar e existir...
Foi também um ano de uma intensa escalada interior, de superação de medos, de resistência ao tempo, de seleção de amizades, um ano de fuga. Comecei do zero. Apresentei-me a outra cidade e aí conheci o real conceito de solidão. Não basta viveres num sítio belíssimo quando tens o coração vazio e falta de amizades e loucuras, falta daquilo que foste. Nada parecia fazer sentido e cheguei a duvidar deste meu sonho. Questionei-me sobre aquilo que é um sonho, será a sua conquista ou somente a vontade de o perseguir? Sentia-me estagnada após a ausência de pessoas, de cafés não combinados, de trajar nos dias de fados, das confidências às horas de jantar, no fundo, acreditava que era a falta de amigos e de rotinas antigas, mas era só a ausência de mim mesma. Muitos currículos e muitas portas na cara, muitos dias de chuva a correr em busca de oportunidades, mas também uma esperança inesgotável que me dizia que um dia farei parte disto, um dia serei feliz aqui nesta cidade artística que foi desenhada para mim nas margens do rio Douro.
Cada telefonema de casa era como uma porta para a minha espontaneidade e daí novas energias retornavam. O papel da família foi inquestionável e sublime. Cuida de quem tens no presente porque as pessoas que hoje te rodeiam vão ser um dia a tua maior saudade. Agarra-las em vida e expõe o teu amor. Família são aqueles que fazem a escalada connosco, aqueles que dão o corpo às balas sem recear as consequências, as nossas consequências. Família é o aporte sentimental que reflete todos os sonhos e angústias. Eles aceitaram o meu sonho, acolheram-no como sendo deles, nutriram-no e orgulharam-se dele. E mesmo nos dias em que eu estava triste, eram eles a relembrar-me do quanto eu quis este caminho, a reforçar o meu brilho nos olhos sempre que falava da cidade do Porto. No dia em que vim passar a primeira noite passou na rádio a música "vem ter comigo aos Aliados" e mais uma vez acreditei no destino, como se ele me chamasse e me tratasse por tu. Se antes era um mero capricho, agora era como uma responsabilidade.
O pôr do sol foi como um amuleto simbólico que marcou a minha mudança. Contemplei-o sozinha durante longas tardes de final de verão, como se assistisse à minha própria metamorfose e aqueles tons laranja fossem as etapas da vida. Foi o primeiro impacto com a espontaneidade das pessoas do Porto, o seu gosto pelo lazer e pelo convívio, o ritmo acolhedor para com os estrangeiros e a sensação de que toda a cidade é arte quando até a natureza compactua com ela.
A escrita assumiu-se novamente um fiel porto seguro. Através dela continuei a escrutinar as minhas dores, a compreendê-las e a espremê-las até se tornarem arte. Foi nos dias de maior desconexão, nos dias de maior chuva na cidade e nos dias de maior falta de identidade que aprendi a usar a minha ferramenta de transferir o amor para as palavras e aí percebi que a minha essência continuava reluzente. Havia uma réstia de luz interior que não me deixava desistir. Foi um ano em que arrisquei na escrita da mesma forma que arrisquei na vida.
Também a igreja foi um pilar nos primeiros tempos. Da mesma forma que me aproximava espiritualmente da minha luz do céu, também ia buscar o silêncio de que precisava. A alma de qualquer cidade está na tranquilidade que ninguém procura. Aprendi que para se compreender a azáfama, temos de primeiro compreender o silêncio. Foram horas e horas a falar com Deus, a ouvir o eco dos passos dos crentes ou as músicas em latim. Não pela missa em si e muito menos por aquilo que é proclamado nas igrejas, mas pela minha fé pela vida, pelo ser humano e pela eternidade.
A rotina começou a formar-se, as amizades começaram a surgir, a azáfama do metro deixou de me incomodar e voltei a ver beleza na diversidade de raças, voltei a sorrir para os detalhes singelos, voltei a ler nos jardins, a fotografar a cidade, a escrever pelas ruas. Voltei a apreciar e a apreciar-me. E começou a brotar um propósito no meio desta minha escolha. Nasceu uma sensação apaziguadora em relação ao futuro e uma crença de que vou conquistar o que me rodeia.
Em relação ao campo amoroso, vão sempre haver passados que mexem com as pessoas e as impedem de continuar, vão sempre haver cérebros analíticos e sem espaço para amar, vão sempre haver compromissos de fachada que poderiam ser a renúncia mais libertadora mas que nunca o chegam a ser, e vão sempre haver os que estipulam futuros mas que não despertam sintonia e magnetismo na outra pessoa. Aprendi que da mesma forma que os alicerces teóricos precisam dos práticos, também os práticos precisam dos teóricos. O amor é a tríade de paixão, intimidade e compromisso e, por isso, estes são componentes que não podem ser chamados de exigências ou egoísmo, mas sim de alicerces de relações saudáveis. Aprendi que temos de parar com essa mania de querer dar o mundo de presente a alguém que não quer fazer parte dele. Parar de dar significado a ações que não foram provocadas pelo amor, mas pelas hormonas. Há que dividir a natureza e o instinto de um homem daquilo que ele quer para ele e da fase da vida em que está. Colocar rédeas no coração é dos maiores desafios porque a nossa mente replica os momentos de forma inconsciente e inconsistente. E quando, por vezes, surge alguém do teu passado sem ninguém imaginar volta o sentimento, voltam as memórias, volta o turbilhão e aí o processo de esquecer é duplamente duro e ingrato. Como se a sensação de dependência estivesse só à espera de ser libertada, como se fosse um vício apenas guardado na gaveta. E mais uma vez voltamos a acreditar no destino. O destino da atração e das consequências, quando a maior delas é sempre um coração a rebentar de expectativas e sonhos e desfeito pela falta de amor dos outros. Aprendi que é muito mais importante preservar o amor que albergamos do que o extinguirmos com pessoas impermeáveis às emoções. Se o ser humano não compreende o amor, entreguemo-lo à natureza, à arte, aos animais, à vida que nos rodeia. Aprendi que não devemos sobrevalorizar pequenos detalhes porque aquilo que absorvemos como negativo reflete a forma como nos sentimos e não aquilo que realmente importa. As mensagens que as pessoas nos transmitem por olhares, por um beijo, por um telefonema, são todas elas muito simples. É simples ver quando há amor e quando não há. É simples perceber que um silêncio nunca significa um vazio, porque é no silêncio que encontramos as maiores respostas e, por vezes, as provas de falta de dedicação. A complexidade está na nossa mente, no atrito que nós mesmos criamos face àquilo que já sabemos, na inércia de criar argumentos que refutem aquilo que não queremos aceitar. Aprendi que quando nos conformamos com as decisões dos outros estamos a revelar amor e resiliência, revelamos que mesmo percorrendo atalhos criados por outrem conseguimos chegar ao destino na mesma. Não se trata de sermos submissos, trata-se apenas de atravessar o desfiladeiro numa outra ponte mas na mesma direção e com o dobro da convicção. A vida tem muitos destes desfiladeiros mas se te mantiveres focado na tua projeção enquanto ser humano, as quedas que terás serão somente na tua imaginação e a ponte nem sequer abanará. Aprendi também que, face a pessoas passageiras, não precisa de haver uma despedida longa e intensa. Quem escolheu ir embora nunca entendeu a nossa presença, por isso tão pouco entenderá a nossa ausência. As despedidas são feitas com a alma e justificações em demasia adicionam um caráter substancial a relações que nunca tiveram substância. Por vezes, por humanidade a mais peca-se por gentileza e humildade. A gratidão não precisa ser escrita e a formalidade não precisa de existir com pessoas que em nada nos acrescentaram. Aprendi também que quem abdica para estar connosco é quem um dia de nós abdicará para estar com outra pessoa. O amor não se trata de abdicar, mas sim de somar. E acredita que alguém largar a sua vida antiga, que outrora era o seu maior defeito, deixa de ter o mesmo sabor porque rapidamente captas defeitos mais impactantes quando deixas de ver a pessoa com lentes cor de rosa. Como se desejássemos tanto que a pessoa se focasse só em nós e quando os astros se alinham passam a ser os seus defeitos a desalinhar o destino novamente, por isso cuidado com o que desejamos e gabamos no calor da conquista adolescente. Lembremo-nos que a pobreza de espírito é transversal a todas as relações e a falta de respeito é imutável, por isso deixemos de nos achar a exceção quando a própria regra tanto fala de traição. E mesmo que sejamos a exceção, isso não faz da pessoa que está connosco uma pessoa melhor, faz-nos somente a nós melhores por termos despoletado algo que mais ninguém conseguiu. O mérito é nosso porque a conquista foi nossa e nós insistimos em alimentar mais a ideia de que somos conquistados do que a de que conquistamos o outro. Além disso, lembremo-nos que a nossa conquista é, muitas vezes, uma imagem distorcida de quem erradamente idealizamos. E no dia em que perdemos a batalha, não é essa pessoa que perdemos, mas a sua idealização em torno dela, porque se fosse a pessoa que sonhávamos ela jamais iria embora. Ela ficaria sem que nunca lhe pedíssemos para ficar. O verdadeiro amor não gosta de migalhas, não gosta de baixeza. O verdadeiro amor supera e fica. E fica porque quer ficar. Não trates como cúmplice quem te trata como inimigo. Basta inverter o jogo e deixar de depositar esperança em quem não se faz protagonista das nossas expectativas.
Houve também amizades que acabaram por falta de dedicação ou, melhor, por falta de revelação. Aprendi que quando as pessoas precisam de nós irão sempre mostrar o seu melhor lado, mas quando retornam ao seu porto seguro usam a arma que nós próprios lhe entregámos: a confiança. Aí percebes que há teatros que podem durar anos e até morar debaixo do mesmo teto que nós. Como se, de repente, tudo o que tivesses partilhado fosse em vão, como se existisse uma amnésia emocional e que deixou de conhecer e compreender as nossas fragilidades, para as passar a usar como tema principal de um discurso rígido e irónico. Por outro lado, houve aquelas amizades turbulentas mas em que o amor prevaleceu e nem a maior queda a colocou em causa. São essas as amizades maduras em que a recorrência ao diálogo foi a resolução para pequenos mal entendidos.
Aprendi principalmente que há batalhas que foram traçadas para se sofrerem sozinhas, para desenhar mais um traço da nossa personalidade porque, embora traumático, vai trazer uma maturidade suprema. Ajuda-nos a relativizar sentimentos ingénuos e ambiciosos e a relativizar o próprio conceito de dor. Não que a dor se possa subestimar mas quando alargamos o espetro de vivências e momentos dolorosos entendemos como é pequena a escala de alguns problemas que antes tínhamos como os piores do nosso dia a dia. Às vezes é a importância que damos aos problemas que os amplia por si só, quando tantas são as vezes que não passam de uma areia no sapato.
Apesar de tudo, foi um ano muito bonito, vivido e positivo. Dediquei-me à filosofia, despertei ainda mais o gosto pela poesia, viajei pelo país fora e fiz muitas amizades inesperadas, daquelas em quem tu tropeças e te fazem acreditar novamente no destino. Foram muitas as montanhas que explorei, hectares de felicidade vividos, cascatas por onde me atirei, gritos de euforia, música alta, canoas de juventude, castelos de princesas, boleias de graça em plena serra, praias e lagoas desertas, gelados de infância, caminhadas à beira rio, viagem à época medieval,... Pessoas, experiências, personalidades, perspetivas, cheiros, palavras, cores, sons, arrepios. Foi um ano gigante. Um ano em que assumi o risco da vida, em que deixei para trás o que fui para assumir as rédeas daquilo que sou e quero ser. Hoje sinto-me mulher, sinto-me capaz de liderar os meus objetivos.
Não importa ver os anos passar dentro de casulos de monotonia, relações ou estereótipos da sociedade, importa sim aproveitar a viagem a que temos direito porque o lugar do passageiro é só nosso e cabe-nos a nós experienciar um pouco de cada carruagem. Não é a vida que nos resta, é a morte que nos sobra. Importa sermos nós próprios e preservamos a diferença para o qual fomos concebidos. Não deixemos que o mundo nos convença do contrário ou que as pessoas nos façam sentir menos amados ou especiais. O nosso valor não está a leilão e não valemos aquilo que pagarão por nós, mas por aquilo que acrescentamos à humanidade. Não valemos aquilo que os outros escolhem ver em nós, valemos aquilo que nós próprios vemos em nós. Valemos a nossa paz interior.
Sou feliz pelo que vivi e sei que em cada segundo existiu amor e espontaneidade. Em cada segundo, nunca deixei de ser eu mesma. Eu e tu: o eterno cheiro das rosas.

Comentários

  1. A Vida é uma viagem e tu transformas todos os momentos, sejam eles bons ou maus, em algo mágico, verdadeiro e cheio de amor . A tua escrita faz viajar para fora do espaço-tempo, de tão expontânea e sublime que é. 5* Que a tua estrada seja feita das estrelas mais bonitas que o Universo tenha para te prendar e que elas te deem toda a força para continuares a seres quem és. ;)

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    1. As tuas palavras encheram-me a alma!!
      Obrigada por viajares comigo para fora deste nosso espaço/tempo tão pequenino à beira dos nossos sonhos <3

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Zaask

Escritora e Fotógrafa