Utopia no Mondego


Foste como um mistério desvendado, uma carta de amor assinada pelo vento da tua respiração ou uma noite quente em que os astros se renderam à constelação de dois corpos. Foste como uma flecha de uma utopia desmascarada, a voz de um qualquer destino escrito à pressa ou a ampulheta que foi rainha do timing perfeito. Foste como uma tempestade de verão, uma seca de inverno ou uma flor fora de época que preferiu crescer fora da estufa. Era Maio e tínhamos como pano de fundo todo o turbilhão académico, contudo estranhamente calmo. A magia pairava na cidade calada, como se ela fizesse silêncio só para nos ver. Ou seria o amor a desligar os ruídos da cidade? Chovia com a mesma intensidade com que existia aquele cliché no calor do teu casaco. Apesar do caráter surpreendente dos acontecimentos existia uma conexão sublime, uma sintonia tão leve como o ato de existir em ti. Como se tudo já estivesse programado nos confins das entrelinhas do futuro. Sujos, frios, mas surpreendidos pela vida. Foste porta que abriu sem chave e desassossego que aconteceu sem permissão. Será esta saudade também um acaso? Estarei eu a sofrer por um deslize como uma criança sofre quando cai? Desta vez foi a queda da imprevisibilidade. Surgiste por acaso, amei-te por acaso e hoje sofro por acaso. Teremos ambos nascido por um acaso para que o nosso reencontro fosse o acaso mais belo e inevitável? Já nos conhecíamos antes, ao contrário do que julgaram as estrelas, mas ser-se compatível é sê-lo sempre pela primeira vez. Fomos astros. Fomos luz e calor. Fomos a lenda. Fomos revolução. Mas o tempo insistia em remar contra a nossa vontade e rapidamente chegava a hora em que voltávamos a sentir o frio da madrugada em formato de solidão e o orvalho gelado do amanhecer como gotículas de saudade prematura. Como se o sonho acompanhasse o rio e o desaguar pertencesse à tua ida racional. Como se a margem fosse só nossa, mas o encontro com o mar fosse o teu retorno ao mundo real. Como se na foz daquele rio existisse o teu passado e as amarras que dele sentes. Seremos sempre a utopia do Mondego, nada seremos além de dois jovens que deram as mãos na flor da idade e que ouviam fados para aquecer o seu coração. Fomos tudo mas hoje somos o nada que pertenceu à margem do rio. A utopia viverá ali para sempre porque depois de me despedir de ti, passei a pertencer ao futuro. Não o nosso, mas o meu. O futuro que pertencerá a outro rio, outro rumo. Sei que sempre que voltar à minha cidade académica os meus olhos serão do Mondego e neles será sempre espelhada esta utopia em que omitimos o que sentimos e o que fomos. Obrigada às estrelas por termos existido.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa