Conheces realmente alguém?


Sinto-me presa a uma sociedade que se apaixona pela ideia daquilo que os outros são, como se existisse um formato clonado por mentes sonhadoras e moldado pela projeção que queremos ver em alguém. A paixão passa a ser em relação ao projeto quase virtual que criamos. Esquecemo-nos que anulamos a personalidade da pessoa, a sua fase da vida, as suas ambições profissionais e emocionais. Quase o tratamos como um boneco oco, do qual só queremos a carapaça e o interior será esculpido com um bafo de sonhos. Ou a pessoa se agarra à beleza fictícia que criaram dela e falsamente representa amor ou a pessoa apaixonada será a autora de toda a história, em que cria o príncipe, o diabo, o drama e o amor louco, tudo na mesma personagem, senda ela própria a vítima desse cupido. Conheceremos verdadeiramente alguém quando esse alguém nos faz desviar de nós mesmos? Conheceremo-nos a nós próprios ao redor deste ciclo pouco lúcido? Quem será a verdadeira vítima, aquele que ama e se arrepende ou aquele que foge mas não prova o amor?
O problema não está em idealizarmos aquilo que não estamos preparados para oferecer, mas em idealizarmos algo que não estamos preparados para receber. Alimentamos o ideal da princesa encontrar o príncipe e no fundo não temos sequer um castelo para o receber, se não a nuvem de sonhos de que achamos que ele é feito. A nossa vida não corre com a mesma velocidade das nossas expectativas e, por vezes, não temos verdadeiros alicerces para acolher alguém de braços abertos. Oferecer é fácil para quem ama, mas saber receber exige mais do que isso, exige dedicação e paciência porque o amor não tende a ser paciente. O amor é efusivo. Por vezes o amor que recebemos chega-nos num formato diferente daquele que conhecemos. É difícil descodificar os sinais de carinho e saber recebê-los é, a meu ver, um ato de resiliência e até coragem. Conheceremos verdadeiramente alguém cuja dimensão não é compatível com a vida que levamos? O que será mais grandioso, o valor da pessoa que não coube na nossa vida ou o amor que nunca foi compreendido e correspondido?
Outro problema prende-se com a forma como a sociedade nos incute sensações que dominam a nossa própria identidade. Somos ensinados a sentir a ausência de pessoas que já partiram e a longo prazo a sociedade ensina-nos a sentir falta de pessoas que ainda nem conhecemos. É como tecer sentimentos pelo desconhecido, pelo nevoeiro que paira pela nossa auto-estima. Esta teia de perdas faz-nos sentir, inevitavelmente, incompletos. O sofrimento passa a estar aliado a um vazio humano, como se a nossa existência não representasse uma forte premissa para a felicidade. Como se a felicidade sempre estivesse noutras ruas, noutras crenças, noutros corpos. A felicidade não é um mero cenário exterior, ela vem de dentro porque nós a sentimos. A sensação de leveza, a emancipação do nosso sorriso, a nossa voz entusiasta, nada disto pode ser um fantoche nas mãos de um vazio provocado por nós próprios. A nossa pele existe, é lá que pairam os sentimentos! A nossa respiração existe, é nela que oxigenamos os nossos sonhos! O nosso coração existe, é nele que bombeamos a força de sentir! A felicidade apenas mora em nós. Conheceremos verdadeiramente alguém cuja ausência nos afogue a alma? Conheceremos alguém cuja maior faceta seja o domínio da nossa felicidade? O que será mais belo, a fé no desconhecido ou a certeza de que possuímos amor próprio?
Acrescendo a tudo, as mulheres enfrentam o grave problema da reputação ao passo que os homens reinam perante uma coleção de conquistas. Conheceremos verdadeiramente a nossa sociedade quando ela impõe machismo nos próprios sentimentos? Conheceremos verdadeiramente um homem que procure uma mulher somente pela habituação da conquista? Conheceremos verdadeiramente uma mulher que procure um homem somente pelo seu vício sonhador de encontrar um príncipe? Certamente que uma boa dose de humildade e honestidade resolveriam estas suposições e juízos de valor, mas todos sabemos como é raro existir um diálogo sentimental nos dias que correm. Vivemos numa sociedade de medos e de ideias pré-concebidas que nos leva a ferir o coração e corações feridos são aqueles cujo medo já não é o de dar errado, mas o de dar certo.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa