Divergência sentimental


Acontecemos em segredo. Fomos o paradoxo do amor, a impossibilidade da existência e a leveza do tempo. Fomos a bíblia dos olhares, o templo da liberdade e a sinfonia do desejo. Foste a carne que delicadamente me vestiu e abraçou. Foste como pó passageiro que voou com o vento do final do verão. Fui aquela loiça frágil que protegeste, a loucura que temeste e a dedicação que não mereceste. Foste sinónimo de platónico, símbolo de idealização e compatibilidade em carne e osso. Trazias contigo o dom de saber lidar com pessoas valiosas, a capacidade de albergar a inquietude que é o amor, um universo no teu olhar que me fazia querer sonhar e ser a tua obra de arte. Fomos estranhamente compreendidos e subtilmente invasivos, como meros crentes da vida, novamente adolescentes ingénuos e constrangidos, novamente a explorar capacidades de sedução. Trazias contigo uma respiração que parecia trazer novidade ao ouvido, uma argumentação que parecia iluminar a minha imaginação, uma singularidade que me preenchia vazios emocionais outrora áridos e esquecidos. Trazias contigo a peculiaridade, a magia de seres quem és. Trazias um pensamento forasteiro que emanava virtude, uma postura pacífica que rimava com aquele calmo relento e um olhar que parecia ter um acordo com os astros. Senti-me parte dessa constelação que brilhava com as luzes daquela festa popular. Existimos naquela dualidade entre o final da festa e o começo de nós, no limbo entre as luzes e a escuridão, entre a vontade de querer e não poder. Hoje sei que sentir os pequenos destroços significa sentir-te, sei que lembrar-te é sinónimo de te ter conhecido e sei que por entre a dor do teu anonimato existe gratidão em nos termos cruzado. Não consigo sofrer porque lembrar-te é sentir vida em mim. E tampouco consigo ignorar olhar para o muro em que nos sentámos, recordar que à tona daquela pedra fria existiram duas mentes flutuantes e curiosas, cuja conexão mental manteve o mundo na sua órbita. Escrever sobre ti faz-me ter a certeza de que não é o dom da escrita que me move, mas o dom de sentir, o dom de viver. E em ti eu soube que existi, por isso obrigado.

Comentários

  1. Sem palavras. Um texto sublime, um furacão de emoções. Parabéns!

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Zaask

Escritora e Fotógrafa