Espontâneo

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Por entre a insónia do meu ser procuro a inspiração no caminho dos eufemismos e silêncios. Imagino o som dos sinos e a sua profundidade é tão real que ecoa por estas linhas. São sinos como poderiam ser anjos, pianos, danças com pés descalços, crianças a brincar ou pinturas faciais indianas de quem todos os dias brinda à vida. Esse som profundo que ouço transpira isso mesmo: vida. Debruço-me sobre a mesa, não à espera de notícias arrebatadoras, nem de palmas, nem fogo de artifício a iluminar a vizinhança, mas esperando pequenos recomeços de alegria interior, valorização pessoal e luz própria. Esperando sobretudo verdade em cada palavra que pronuncio. A verdade por detrás da nossa existência, a vontade de expressão das coisas mais simples. A folha que carrega as gotículas de chuva, a sombra de uma nuvem desenhada no chão, o gato que espera o seu dono à porta, duas mãos quase centenárias que se entrelaçam na rua, o positivismo do senhor das pizzas ao afirmar que cada dia de trabalho passa depressa, a alegria estampada no rosto em manhãs de sexta feira, o compasso rítmico das pessoas e autocarros... É esta simplicidade que quero reportar porque poucos são os que se curvam perante ela. Estou em busca de um bom conversor de sentimentos, algo que converta pormenores singelos de natureza em pureza sentimental, ganhar a capacidade de ampliar e valorizar algo que é despercebido para a sociedade e singelo para quem tenta enfrentar uma rotina de trabalho. E, agora, me apercebo que esse som que oiço já não reflete sinos, nem badaladas, nem ecos e creio que a verdadeira inspiração tem origem nesse desconhecido e é alimentada por esse véu ténue a que chamamos de incerteza. A não descodificação, a procura sem um encontro, é a mais fiel arma da escrita. A mais angustiante mas a mais redentora. A dor é o segredo. Os próprios escritores criam a sua dor porque precisam dela. Pode ser uma dor que cause destruição como uma dor que cause esplendor, sendo essa linha ténue e interrogativa aquela que habita na escrita. Na verdade, em pouco se distingue o esplendor da destruição, porque são os destroços que nos proporcionam entrelinhas credíveis na nossa vida, que nos dão a cal para que se fale de algo, como uma desculpa para que possamos ter uma escrita crua, dura e sensata. Muitas vezes um texto resulta apenas da luta entre o esplendor e a destruição, como se a dor quisesse falar e dela emergisse a vontade em ser bela e divinal ou em ser cruel e injusta, mas sempre arrebatadora. Falei de sinos, de natureza, falei de amor e de dor, e agora percebo que tudo não passou de uma inspiração fugaz após uma sesta, onde o descer à realidade se afirmou por notas de melancolia a invadir a minha sala. Na verdade julguei que aterrei de pés na terra, mas como ao fim de qualquer texto que escrevo sinto que apenas estou a flutuar sob a realidade, porque ela é tão fria e distante ao lado do recanto que crio para mim mesma. É para essa realidade paralela que fujo sem destino e me atiro sem medo dos destroços. E, por isso, ponho de parte a dúvida de que a inspiração existiu porque sei que eu mesma existi neste texto e isso basta-me.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa