Aquela infância

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Ali vou eu de alma leve, a correr pela praia e a sentir a bravura daquelas pequenas ondas que me assustam. Mas vou feliz. Vou de coração cheio. Carrego sonhos concretizados a cada respiração e todo e qualquer movimento só emana de mim a mais bela juventude. Sou pequena demais para enfrentar aquelas ondas mas com uma coragem grande demais perante a vida. Mas a verdade é que nada é demais por esta altura. É o nosso mimo exagerado, a nossa carência levada ao extremo, que faz das crianças os seres mais bonitos e protegidos do planeta. Elas carregam os maiores dos antagonismos. Demonstram inquietude mas só possuem leveza, escondem a timidez com gargalhadas, atenuam a sua tristeza com brincadeiras, dizem frases simples mas poderosas, que fazem do seu intelecto o mais simplista mas aquele que mais nos surpreende. Era essa simplicidade que me fazia sentir aquela areia molhada com uma gigante alegria, apanhar conchas com uma enorme dedicação, e hoje penso que a natureza e os momentos plenos que temos com ela mereciam maior apreço por todos nós. Pena que muitas vezes estes momentos já só existam na forma de um papel retangular perdido no álbum do tempo. Era por entre corridas com o meu pai e sestas no colo da minha mãe que eu acreditava que tudo fazia sentido e que algo de muito bom estava garantido na minha vida. As garantias mantiveram-se, mas surgiram muitas outras exigências e objetivos que se sobrepuseram àquilo que já tínhamos. Sem nos apercebermos que continuamos a ter o que é realmente belo, os nossos pais e a areia da praia no mesmo local. É isso que a rotina nos faz esquecer, que já temos o suficiente para sermos capazes de lidar com os mundos profissionais e emocionais. Sempre tivémos o poder de escolher qual a onda a apanhar ou qual a velocidade a que queremos correr. Podemos já não trazer conchas nos bolsos ou o cabelo repleto de sal, mas a vida continua a ser uma breve corrida pela praia, ora serena, ora tempestiva, consoante o ritmo marítimo, onde percebemos que o que restou da nossa infância e da rotina da semana passada foi exatamente o mesmo: pegadas. O produto da infância e o produto do nosso presente vai apenas gerar mais pegadas, porque a areia continua e a tua força interior também. Há uns anos não raciocinávamos sobre a nossa sorte, sobre aquilo que nos transcendia e nos gerava o nosso conceito de felicidade, porque nos contentávamos com o deleite do presente. Hoje em dia somos robotizados de forma a ignorar o passado e o presente e adquirir um foco extremo no futuro. Estamos pouco preocupados com aquilo que fomos ou somos, mas com aquilo que queremos vir a ser. Estamos literalmente a agarrar-nos à utopia e é a nublina desse desconhecido que nos leva a esquecer aquilo que permaceu desde o dia em que nascemos, da constância de algumas pessoas que nos rodeiam, da nossa forma de estar, do nosso lar e das nossas pegadas na areia que provavelmente iam numa direção diferente daquela que tomamos agora. Se em criança nós voltaríamos atrás para apanhar uma concha perdida, hoje nós atiraríamos essa concha para bem longe, como forma de traçar o nosso alcance e alargar os nossos limites futuros, mesmo que isso se trate de um horizonte fusco, como se quiséssemos que a vida passasse mais depressa, como aquela viagem chata de comboio onde só queremos ver a estação de chegada. Mas num mundo ideal essa linha de comboio deveria terminar na praia da nossa existência. Ali estava eu a rebolar nas dunas dessa praia e a ver a minha figura espelhada na lucidez do mar, a observar a água a ir e a voltar e a relembrar-me vagamente daquilo que tinha e que mesmo que fosse, voltaria sempre. Era ilusório, mas era inspirador. Parecia delírio acreditar que tudo o que fosse também viesse, mas tem um pouco de verdade, porque mesmo o passado, que é a condição que nunca retorna, trás consigo tudo aquilo que tu foste, toda a premissa que faz ti, hoje, um argumento forte e coeso. O passado é a tua alma, a tua impressão digital. Foram as tuas quedas e fracassos que te duplicaram a força ao levantar hoje, foram as tuas escolhas bem sucedidas que te levaram a defender os ideaias que defendes, foram os teus medos que te levaram a acreditar em certas frases inspiradoras. Os conceitos básicos de bom ou mau, de medo ou curiosidade, de injustiça ou frustração, não foram apenas adquiridos na tua infância, estiveram e têm estado sempre em constante construção, limagem, atualização. O passado é mais presente do que o futuro. O incerto e aquilo que nunca aconteceu não poderá fazer parte de nós, de maneira nenhuma. O próprio ato de sonhar é totalmente baseado no nosso passado e na nossa experiência de vida. O passado é a garantia mais bonita que temos, que nos liga a pessoas e momentos perdidos, porque nos afirma que aquelas pegadas foram desenhadas por nós, enquando fazíamos parte da vida de alguém, enquanto travávamos uma luta interior, enquanto festejávamos ou chorávamos. O passado é a saudade e a saudade é a valorização de algo. Exércitos pensantes que só saibam olhar em frente não poderão nunca ser felizes nem conhecer os seus alicerces, a sua essência. Hoje em dia, um posto de trabalho, um parceiro de relação, uma refeição gourmet, um espetáculo famoso, uma viagem de barco ou um simples bilhete de cinema, são tudo coisas que não são garantidas e que, se forem embora, podem nunca mais voltar. Mudaram as circunstâncias na proporcionalidade da tua experiência de vida e da tua força interior, mas enquanto existiu um número crescente de coisas não garantidas, aquelas que eram garantidas mantiveram-se: a tua alma e o teu passado. Lembra-te que foram os teus pés que moldaram aquela margem, é o diâmetro da tua existência que ali está. Sobras sempre tu e o teu chão de areia. Lembra-te disso.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa