Conta telefónica


Recebi a conta. Eram 36 cêntimos... Dizem que se começa a amar quando se liga para ficar em silêncio. Essa chamada foi a prova disso mesmo. Só queria um "estou", um "olá", um "quem fala?" ou fosse o que fosse. Queria provas de vida e de amor. Mas a desilusão falou mais alto e a ingenuidade acabou quando o orgulho começou. Não diria orgulho, mas sim a capacidade de nos valorizarmos. Tornamo-nos, talvez, mais frios, mas isso não tem de ser necessariamente mau. A verdade é que baixámos a cabeça tantas e tantas vezes e chega o momento em que nos sentimos tentados a provar um pouco da franqueza. No fundo, seguir os nossos princípios, porque estávamos erradamente habituados a fazer dos princípios dos outros os nossos trajetos a seguir. E é na primeira tentativa de nos deixarmos de esforçar por agradar aos outros que o mundo treme por momentos. Percebemos que já nem a verdade podemos dizer e que tudo é propício para que as pessoas se tornem falsas. A sinceridade mata, é irónico. Tudo porque não fiz o que era suposto... porque não me rendi à normalidade, porque a vida me obrigou a traçar atalhos... Mas ergo a cabeça e penso que muitos um dia dirão para os seus filhos "não tive grandes solavancos e aventuras, apenas fiz o que era suposto", enquanto nós, os remos dos mares revoltados, vamos ter uma lição que contar em cada história, um objetivo cumprido e festejado, uma bênção concretizada ou simplesmente um sorriso genuíno, mas difícil de desvendar. Tudo porque nos bastámos a nós próprios quando nós não éramos suficientes para os outros, quando o mundo não nos reconhecia como alguém que valesse a pena. Tudo porque a maturidade surgiu. E tudo porque os que nos fizeram sofrer nem sequer imaginam os esforços necessários para que um dia nos mereçam. Seremos como estátuas de pedra com a imortalidade do tempo no exterior e uma tempestade de memórias a navegar como lava no seu interior. Seremos aqueles que saberão contornar encostas e delinear percursos perigosos, seremos aqueles que terão a experiência de vida como braço direito. Encaremos cada desilusão como um degrau para uma vitória futura. Seremos firmes, convictos e racionais! E aí, sim, estaremos no topo do mundo. Percebi isto quando a conta telefónica voltou a ser sempre a mesma. As contas mudaram, a vida mudou.

Comentários

Zaask

Escritora e Fotógrafa