Telhal no nosso coração


O trajeto era longo e as expectativas eram tão grandes como a nossa viagem o foi. Chegámos com um brilho nos olhos e cheios de vontade de cumprir o nosso dever. Não era apenas uma casa de saúde, era o refúgio mais nobre e puro que eu poderia ter encontrado. Acolheram-nos pessoas excelentes, com dicções e vozes incríveis, dotados de uma visão do mundo extremamente realista, implacável e motivadora. Entrei receosa e curiosa, mas comecei a apaixonar-me aos poucos por toda aquela energia, toda aquela força transcendente que acompanhava o sabor dos meus passos. Era tudo novo e inspirador. O vento a soprar nas janelas do sótão, o silêncio renovador a assumir as rédeas de nós mesmos, aquele "gosto muito de ti" no meio de silêncios e passos apressados, aquela euforia à porta de entrada aquando de ouvirem a nossa chave a abrir ansiosamente aquela fechadura, aquele mistério genuíno que pairava no ar quando as respostas eram menos expressivas, aquela asneirola que sabemos que não foi por mal porque logo a seguir existia um ato bonito de carinho, aquele abraço apertado que seria impossível de recusar, a expectativa de carinho que depositavam em nós e nós depositámos neles. O conceito alargado de amor que levámos para casa. Acima de tudo. Lembro-me das ambições tão pequeninas e tão genuínas que eles tinham: havia quem sonhasse ser pescador, quem quisesse casar, quem gostasse de ter coragem de cantar, havia quem planeasse o seu próximo livro a ser lido, quem quisesse sempre entrar na foto, quem tivesse o desejo de sonhar, meramente sonhar e lutar contra as insónias da medicação. Havia quem, simplesmente, quisesse apanhar sol à porta do café, quem quisesse ir passear apenas para ver gente e agradecer a bênção de existir mais um dia, havia quem quisesse apenas e somente beijar a nossa mão. Foi uma experiência arrebatadora, emotiva e construtiva! Tocou-me a autenticidade das pessoas, o seu sorriso encantador, a sua expectativa em ver a nossa chegada, o facto de priorizarem um simples abraço e de terem como único desejo, o de fazerem amizades verdadeiras. Um dia podemos ser nós a pedir para ir ao bar desenfreadamente, ver os voluntários a chegar e a ir embora, e a sentirmo-nos solitários ao fim de cada dia... podes vir a ser tu, pensa nisto. Os momentos de reflexão e oração eram, também, muito intensos, repletos de emoção e alegria, era a parte do dia direcionada um pouco mais para nós, onde nos compreendíamos a nós próprios e à nossa missão na casa, em comunhão com Deus. Era nos momentos de silêncio que me questionava sobre o porquê das pessoas ignorarem o sofrimento e caminharem apenas ao ritmo das suas ínfimas vidas, de se vestirem de preconceitos como se vestem de luxúria, o porquê de não alargarmos os nossos horizontes e estendermos a mão aos outros, de não existirem sequer remorsos ao saber que todos os dias apenas acordamos para nós mesmos, o porquê de existirem pessoas que choram do coração e nós ignoramos mesmo sabendo que pisam a mesma terra que nós, que têm direito aos mesmos sonhos que nós, que foram um rebento igualmente regado por Deus. Os braços deles às vezes podem vacilar e não nos acenar, as pernas deles podem falhar e ficar sem forças para ir ao nosso encontro, a voz pode estar, também, impedida de nos chamar, mas o seu olhar chama-nos a cada segundo e o brilho que nele falta retrata a nossa missão como voluntários. Eles podem ser chamados de loucos e incompreensíveis, muitos vêm neles estranheza e um poço de negatividade, mas eles estão abatidos pela sociedade, oprimidos pelo verdadeiro antro de negatividade, que são as pessoas que pisam as ruas todos os dias. Imaginem-se a serem abandonados pela família, a deixar de saber o que é sorrir, a ouvir gritos de um lado e uma colher repleta de comida do outro, imaginem sentir a solidão no meio de tanta gente à sua volta, porque essa é a pior solidão, imaginem acordar e terem de esperar pela próxima funcionária, não conseguirem adormecer porque se esqueceram do último comprimido, imaginem o que é vermos apenas o sol e o céu por detrás do vidro da janela, por detrás do ferro enferrujado que acompanha o seu coração solitário. Imagina agora se fosses consciente de tudo, se a tua consciência despertasse o quão injusto aquilo tudo é, o quão leviana foi a vida e surreal foi o seu fim. Imagina-te. Conseguirias, sozinho, ser alguém positivo? Claro que não. A negatividade nasceu na sociedade. Aquela que tem almofadas de penas e janelas viradas para a lua, quando nem sequer sabem sonhar. O amor não é construir uma grande casa para os nossos filhos, não é poupar para oferecer um telemóvel à nossa mãe, o amor não é limpar o quarto dos nossos irmãos a troco de dinheiro, não é vestir uma bata e dizer que se é voluntário. É, pois, revolucionar o mundo com pequenos gestos. Um abraço, um aperto de mão, um beijo, uma oração, uma cantiga ou a simples presença física. Amar é oferecer carinho de mãos abertas e sem querer nada em troca, é querer tocar em qualquer coração que esteja sufocado e perceber que de cada vez que nos entregamos, o amor é mais transcendente do que alguma vez foi. Agora, após a chegada, parece tudo tão insignificante, tão superficial... É como sentir pela primeira vez na vida que o mundo precisa, efetivamente, de nós. Irá custar não dizer bom dia a quem passa na rua, assumirmos o papel arrogante da sociedade... mas vivamos sem máscaras! Assim foi pregado no Telhal e assim façamos disso um lema. Há falta de carinho, de inocência, de dependência de pessoas! Há falta de coragem para substituir um telemóvel por um abraço caloroso, a nossa série favorita por um sorriso verdadeiro, uma ida às compras por um passeio pelo jardim, uma sesta no sofá pelo ato de estender a mão e ajudar a erguer quem caiu... A verdade é que há uma linha muito ténue entre nós e eles, e percebi que vendo o amor que eles têm para dar comparando com o amor que a sociedade nos dá, no meio disto tudo a normalidade precide neles, apenas neles. Não em nós. Nós somos apenas um meio, um aqueduto que os leva ao seu próprio encontro. O mesmo aqueduto que fortaleceu a nossa confiança e nos fez perceber que mais difícil do que entrarmos em vidas alheias e confiar nos outros, é abrirmos portas e deixá-los a eles entrar na nossa vida e nós confiarmos realmente neles. Não eram apenas cinco metros de queda nas laterais de um aqueduto, era o retrato fiel da confiança e em como a sua inexistência nos levaria a um impacto brutal no coração, nos valores, na razão de viver. É difícil transmitir por palavras ou gestos o meu entusiasmo! Peço-vos, somente, que venham e cumpram o vosso dever. O resto serão vocês a contar, porque quem vive esta realidade é que saberá o quão arrebatador é. Na partida, há que arrumar não apenas as malas, mas também os nossos pensamentos. Os nossos novos e renovados pensamentos. 

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Zaask

Escritora e Fotógrafa