Existe o amor, e depois existes tu

Sempre cresci com a história da Cinderela no peito
Mas preferia não saber o que é viver algo perfeito
Respirava fortemente e lançava papagaios ao vento
Saber que estava no teu coração era o meu grande alento
Ver a chuva lá de fora naquele ninho quente e genuíno
Era qualquer coisa mágica e que rimava com destino
Acolhidos pelas estrelas na relva fresca das madrugadas
Falava-se e sorria-se mesmo em noites geladas
Éramos apenas nós a quem o pôr-do-sol convocava
Ainda não sei se foi sonho, se realidade roubada
Admiradores do campo, camuflados na natureza
O brilho dos teus olhos transportava uma certeza
Construímos expectativas com uma alegria imensa
Os teus abraços inesperados eram a minha maior crença
Beijava as pálpebras dos teus olhos com tanto carinho  
Para quê me veres se basta sorrires baixinho
Revivíamos o primeiro encontro com tamanha alegria
E partilhávamos o gelado como se tudo nunca acabasse um dia
Agora vives nas fotografias e surges como lembrança
E eu vivo neste mundo fechado onde respirar cansa
Rezámos por um futuro e lutámos pela felicidade
Até percebermos que ela já só existe sob a forma de saudade
Todos os dias aquele retrato se apodera da memória
É algo perdido no tempo, a que eu chamava de vitória
Resta a música esquecida, a foto da carteira
Resta a dedicatória perdida e o lugar vazio em frente à lareira
Se a ausência fosse nome, o meu apelido era solidão
E se o amor fosse outra palavra, chamar-se-ia ilusão
Os papagaios que lançámos, o vento os levou
Às vezes penso que o diabo a tua mente enfeitiçou
Vejo-te em fotos com a camisola que me pediste para escolher
Sinto que se a romperes eu tenho o dever de a cozer
Cheguei ao topo do mundo e esse topo eras tu
Lembra-te sempre que eu nunca fecharia o nosso baú
Sei que fui abandonada numa ação que achas-te legítima
Sei que antes era a princesa, mas agora sou a vítima
Quero a pessoa que me conquistou, que existia por eu existir
Quero levantar a cabeça sem ter medo de cair
Podes chorar, mas nunca como eu
Não tens noção do que foi perder o que considerava ser meu
Queria um dia fazer contas para saber os dias que estive ao teu lado
Chegar à hora de jantar e dizer que és um pai babado
Queria voltar a esperar no café pelos teus passos
E saber que cada passo não é mais um dos teus fracassos
É ridículo este apego, esta história de morte
Continuo a achar que sempre foste o meu passaporte
Tantas fotos onde te vejo, que fui eu que as tirei
Foi o sonho mais real que alguma vez presenciei
Os benefícios do orgulho tenho a certeza que não existem
Porque ele só existe dentro dos que mais desistem
Prova-me que estou errada, que estou a perder a lucidez
Que vou voltar a acordar e te vou ter outra vez
Odeio passados brutalmente felizes,
Momentos tão do passado que tu nem caracterizes
Sinto-me tão sozinha num mundo cheio de gente
E foi de dia para dia que deixei de ser crente
O meu lado ingénuo deu lugar à indiferença
Os sonhos diluíram-se numa tempestade intensa
Se tu fosses ar, serias os ventos áridos do deserto
E se fosses o mar, serias o seu horizonte incerto
Dava tudo para acordar um dia de cabeça erguida
Mas ao decorrer dos teus passos eu continuo a chamar vida
Devia viver comigo mesma e assistir à minha rotina
Sem assistir aos teus erros, resumindo-me à minha ruína
E transformar essa ruína num jardim de flores
Colorir a minha vida de todas as cores
Mas se ainda pensares que os meus sonhos são os teus
Prova-me que me foste enviado por Deus
É ele que move mundos e se chama de amor
Metade dele é bênção, outra metade é dor

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Zaask

Escritora e Fotógrafa