( IN ) COERÊNCIA
O sol já ia alto e o calor era intenso. As flores estavam
murchas, a terra estava seca, as pequenas praças estavam solitárias, os
candeeiros pareciam fundidos, os trilhos pareciam pisados por anos de trabalho,
por séculos de sofrimento. Como se aquele pedaço de terra fossem restos de um
apocalipse. Como se toda a liberdade que eu tivera acolhido ali, tivesse dado
lugar a jaulas de gritos de dor, a pegadas apagadas por lágrimas. Tudo parecia
ofegante em mostrar-me a cruel passagem do tempo. Haviam precipícios por onde
passava e onde tropeçava nas minhas próprias mágoas. Tudo há minha volta
aparentava destruição, o mundo estava cansado de me dar sinais, todos os
recantos pareciam albergar um segredo, que apesar de destrutivo era ele que
mantinha vivas as rotinas das pessoas. Era esse segredo que me fazia estar
naquele lugar, àquela hora. A última vez. A solidez dos muros, a cor das casas,
a palidez do céu ao amanhecer, o envelhecer das folhas, o cimento da estrada, tudo
permanecia constante, a olhar-me. Existiam, somente, pequenos rebentos amarelos
aqui e acolá, plantados por Deus e trazidos ao mundo como vagas esperanças. Os
próprios corações eram os mesmos e o que eles albergavam também. Mas a
coerência deixara de estar em sintonia com os caminhos da felicidade. Sim, a
coerência. Como se pianos tocassem e flores brotassem e já nada fizera sentido,
como aquela folha que foi amarrotada e nunca mais voltara ao mesmo, por mais
que a queiramos banhar a ouro. Era o espírito natural que unificava aqueles
caminhos, que dava sentido a palavras que só a bíblia consegue explicar.
Existiam, agora, pedras largadas pelo caminho que jamais serão recuperadas. É a
terra que pisamos e que julgamos nossa, que um dia será a mesma que desaba e
nos abafa até ao precipício. Não basta ser-se de carne e osso para viver. É
preciso existir coerência, uniformidade no respeito e a falta de necessidade em
cometer erros. E é quando a incoerência surge nos outros que questionamos a nossa
própria coerência. Foi embrulhada nestes dilemas que vi a solidão como um
caminho de paz. Até que me sentei num rochedo rugoso, tão desequilibrado como
os meus pensamentos, tão pouco linear como a minha vida. Deparei-me com
terrenos irregulares, uns quantos metros quadrados abatidos de erva por aparar,
com um declive tão acentuado quanto o meu desânimo, com tantos sinais de secura
quanto os meus olhos. Foi então que ouvi uma melodia uniforme que respirava mistério,
era a dissipação de algo tão transparente mas que tocado num instrumento
parecia palpável, eterno, e extremamente incoerente… Era a música do meu
funeral. Nunca ouviram a vossa? Eu já, e é por isso que me considero viva. E
sabem porquê? Porque foi a área abatida daquele terreno que me deu ímpeto para voar,
as áreas geladas e rasgadas do meu coração que me permitiram afogar qualquer
incoerência e definir um novo rumo.
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